As Verdades Não Ditas de um Casamento Perfeito
— Não aguento mais, Helena. Não aguento este silêncio — sussurrei, com a voz embargada, enquanto fitava as luzes de Natal a piscar do outro lado da rua. O eco das minhas palavras perdeu-se na sala vazia. O relógio marcava quase meia-noite e, apesar do frio que entrava pelas frinchas das janelas antigas, sentia-me queimado por dentro.
O meu pai partira há três meses. O homem que sempre fora o pilar da família, o conselheiro, o amigo. Desde então, a casa parecia maior, mais fria, como se cada parede guardasse um segredo ou uma ausência. Helena, a minha mulher há quase dez anos, tentava preencher os vazios com gestos pequenos: um chá quente, um cobertor dobrado no sofá, um beijo apressado na testa. Mas eu sentia-me cada vez mais distante dela, como se estivéssemos em lados opostos de um abismo.
Naquela noite, enquanto me perdia nos meus pensamentos, ouvi vozes baixas vindas da cozinha. Era Helena ao telefone com a irmã, Mariana. Não era raro conversarem àquela hora — Mariana vivia em Braga e só conseguia ligar depois de deitar os filhos. Mas havia algo diferente no tom de Helena: uma urgência, uma tristeza contida.
— Eu já não sei o que fazer, Mariana… O Samuel não fala comigo. Parece que estou a viver com um estranho — ouvi Helena dizer, com a voz trémula.
Senti um aperto no peito. Não era só eu que me sentia sozinho. Mas antes que pudesse afastar-me para lhes dar privacidade, Mariana respondeu:
— Tens de lhe dizer a verdade. Não podes continuar assim. Ele merece saber.
O sangue gelou-me nas veias. Que verdade? Que segredo era este que pairava entre nós? Fiquei imóvel, preso entre o medo e a curiosidade.
— Não consigo… Tenho medo de o perder — murmurou Helena.
— Se não lhe disseres tu, eu digo — insistiu Mariana.
O telefone desligou-se e ouvi passos na direção da sala. Corri para o sofá e fingi estar absorto num livro antigo do meu pai. Helena entrou, olhou-me por um instante e hesitou antes de subir as escadas.
Naquela noite não dormi. As palavras ecoavam na minha cabeça: “verdade”, “perder”, “merece saber”. O que é que eu não sabia sobre a mulher com quem partilhava a vida?
Os dias seguintes foram um tormento. Helena evitava-me ainda mais do que antes. O Natal aproximava-se e a família preparava-se para se reunir na nossa casa, como sempre acontecia desde que nos casámos. A minha mãe ligava todos os dias para saber se eu estava bem, mas eu respondia-lhe com monossílabos. Sentia-me traído sem saber porquê.
Na véspera de Natal, enquanto preparávamos a ceia juntos — ou melhor, enquanto fingíamos preparar — decidi confrontá-la.
— Helena, precisamos de conversar — disse-lhe, tentando controlar o tremor na voz.
Ela pousou a faca com que cortava as cenouras e olhou-me nos olhos pela primeira vez em semanas.
— Eu sei — respondeu apenas.
Sentámo-nos à mesa da cozinha, rodeados pelo cheiro de canela e vinho quente. O silêncio era pesado.
— Ouvi-te ao telefone com a Mariana — confessei. — Sei que há algo que me estás a esconder.
Helena baixou os olhos e começou a chorar em silêncio. Esperei, sem saber se devia abraçá-la ou gritar.
— Samuel… Eu… — fez uma pausa longa demais. — Há quase um ano… conheci alguém.
O chão fugiu-me dos pés.
— Como assim? — perguntei, num sussurro rouco.
— Foi numa altura em que tu estavas sempre no hospital com o teu pai… Eu sentia-me sozinha, perdida… Não foi nada sério, juro-te! Mas não consegui acabar logo porque tinha medo de te magoar ainda mais.
Fiquei sem palavras. A dor misturou-se com raiva e vergonha. Como é que não percebi? Como é que ela pôde fazer-me isto quando eu mais precisava dela?
Levantei-me bruscamente e saí para a rua gelada. Andei sem destino pelas ruas desertas da vila, ouvindo apenas o som dos meus passos e o bater descompassado do meu coração. Lembrei-me do meu pai: “Nunca deixes de ouvir o outro lado da história”, dizia ele sempre que havia discussões lá em casa.
Quando voltei já era madrugada. Helena estava sentada no escuro da sala, enrolada numa manta.
— Perdoa-me — murmurou ela assim que entrei.
Sentei-me ao seu lado, mas mantive distância.
— Porquê? Porque não me disseste logo?
Ela respirou fundo:
— Porque tinha medo de te perder completamente. Porque achei que era forte o suficiente para esquecer… Mas cada dia que passava era pior. E depois o teu pai morreu… E eu fiquei ainda mais presa ao silêncio.
Chorámos juntos nessa noite. Pela primeira vez em meses falámos realmente um com o outro: sobre as nossas dores, os nossos medos, as falhas de ambos. Descobri que também eu me tinha afastado dela muito antes da traição; que ambos tínhamos construído muros altos demais para ver o outro do outro lado.
O Natal foi estranho — tenso mas honesto. A família percebeu que algo se passava mas ninguém teve coragem de perguntar diretamente. A minha mãe olhava para mim com preocupação; o meu irmão evitava cruzar olhares comigo; até os sobrinhos pareciam mais calados do que o habitual.
Nos dias seguintes tentei perceber se conseguia perdoar Helena — ou se queria sequer tentar. Fomos juntos à praia da Foz do Douro numa manhã fria de janeiro. O mar revolto parecia refletir o tumulto dentro de mim.
— Achas que conseguimos voltar atrás? — perguntei-lhe enquanto caminhávamos junto à água.
Helena apertou-me a mão:
— Não sei se voltamos atrás… Mas podemos tentar seguir em frente juntos.
A decisão não foi fácil nem rápida. Procurámos ajuda: terapia de casal, conversas longas com amigos próximos, até retiros espirituais sugeridos pela minha mãe devota. Houve dias em que quis desistir; noites em que dormimos em quartos separados; discussões acesas sobre tudo e sobre nada.
Mas também houve pequenos milagres: um jantar improvisado à luz das velas; uma carta escrita à mão; um passeio pelo Douro ao pôr-do-sol; risos partilhados por coisas simples como ver filmes antigos ou cozinhar juntos ao som de Amália Rodrigues.
A dor não desapareceu — transformou-se noutra coisa: compreensão mútua das nossas fragilidades e limites; respeito pelo sofrimento do outro; vontade renovada de construir algo novo sobre as ruínas do passado.
Hoje olho para trás e pergunto-me: quantos casamentos “perfeitos” escondem verdades não ditas? Quantos de nós vivem lado a lado sem realmente se verem ou ouvirem?
Se tivesse feito tudo diferente… teria sido mais feliz? Ou será que é preciso perder quase tudo para finalmente aprender a amar?