As Sombras Invisíveis do Desamor: A Minha História de Amor Perdido
— Não me venhas outra vez com essas conversas, Leonor! — gritou o Rui, batendo com força a porta da cozinha. O barulho ecoou pela casa, misturando-se ao som da chuva que caía lá fora. Senti o peito apertar, como se cada gota que batia na janela fosse mais uma lembrança do que já fomos e do que nunca mais seríamos.
Olhei para os pratos por lavar, para as mochilas dos miúdos largadas no chão, para o relógio que marcava quase meia-noite. O silêncio depois do grito era ensurdecedor. Sentei-me à mesa, as mãos trémulas a segurar numa chávena de chá frio. Perguntei-me, pela milésima vez, onde é que tudo tinha começado a desmoronar.
Quando conheci o Rui, éramos dois miúdos cheios de sonhos numa aldeia perto de Viseu. Ele fazia-me rir, prometia mundos e fundos, dizia que juntos íamos conquistar Lisboa. E eu acreditei. Casámos cedo, talvez cedo demais, mas na altura parecia certo. A minha mãe avisou-me: “Leonor, não te percas por ninguém.” Mas perdi-me. Perdi-me nele, nos filhos, na rotina.
Os primeiros anos foram felizes, ou pelo menos assim me lembro agora — talvez porque a memória é generosa quando queremos esquecer a dor. Depois vieram os silêncios. Rui chegava tarde do trabalho, já sem vontade de conversar. Eu tentava puxar assunto:
— Correu bem o dia?
— Normal — respondia ele, sem sequer me olhar.
Os miúdos cresceram a ouvir mais discussões do que risos. A Matilde começou a fechar-se no quarto, o Tomás preferia ficar na rua até tarde. Eu tentava manter tudo unido com jantares de domingo e festas de aniversário improvisadas, mas Rui nunca estava presente — nem de corpo, nem de alma.
Uma noite, depois de mais uma discussão sobre dinheiro — sempre o dinheiro — sentei-me na varanda e chorei baixinho para não acordar ninguém. Oiço ainda hoje as palavras dele:
— Se não estás satisfeita, vai-te embora. Não preciso disto.
Mas eu precisava dele. Ou achava que precisava. Fui ficando, por medo, por hábito, pelos filhos. Fui ficando até me esquecer de quem era.
A minha irmã, a Joana, dizia-me muitas vezes:
— Leonor, tu não és feliz. Não tens de aceitar isso.
Mas como é que se larga uma vida inteira? Como é que se explica aos filhos que o pai deles já não me ama? Como é que se enfrenta o olhar da vizinhança numa terra pequena?
O tempo foi passando e a indiferença do Rui tornou-se uma sombra constante. Ele já não me tocava, já não me olhava. Os aniversários passaram a ser datas como as outras; os Natais eram só mais uma obrigação.
Um dia, ao arrumar a roupa dele, encontrei uma mensagem no telemóvel: “Saudades tuas.” O número não estava guardado. Senti um frio na espinha. Confrontei-o à noite:
— Quem é a Marta?
Ele nem tentou negar:
— Alguém que me ouve.
As palavras dele foram como facas. Não chorei na frente dele; esperei até estar sozinha no quarto para desabar em silêncio. No dia seguinte, preparei o pequeno-almoço como sempre. Os miúdos notaram o inchaço dos meus olhos, mas ninguém perguntou nada.
A partir desse dia, deixei de tentar agradar-lhe. Passei a viver em piloto automático: casa, trabalho no supermercado da vila, filhos. Às vezes cruzávamo-nos no corredor como dois estranhos que partilham um teto por obrigação.
A Matilde começou a ter más notas na escola. Um dia chamou-me à parte:
— Mãe, porque é que tu e o pai já não se falam?
Não soube responder-lhe. Senti-me pequena diante dela.
O Tomás começou a chegar cada vez mais tarde a casa. Uma noite não apareceu. Liguei para toda a gente até que um amigo dele me disse que estava na esquadra — apanhado com uns amigos a beber cerveja no parque.
Fui buscá-lo sozinha; Rui nem se mexeu do sofá quando lhe contei.
— É um problema teu — disse apenas.
Nessa noite percebi: estava sozinha há muito tempo, só ainda não tinha tido coragem de admitir.
As semanas seguintes foram um arrastar de dias iguais. O Rui dormia no sofá cada vez mais vezes; eu já nem perguntava porquê. Os miúdos evitavam estar em casa. A Joana insistia para eu ir passar uns dias com ela ao Porto:
— Precisas de respirar outro ar.
Mas eu sentia-me presa àquela casa como se fosse uma prisão invisível.
Até que um dia acordei e percebi que não aguentava mais. Olhei-me ao espelho e vi uma mulher cansada, com olheiras fundas e um olhar vazio. Peguei no telemóvel e marquei consulta com uma psicóloga na vila vizinha.
Na primeira sessão chorei tudo o que tinha guardado durante anos. Falei do medo de ficar sozinha, da vergonha de falhar como mulher e mãe, da raiva por ter sido deixada para trás sem sequer um adeus digno.
A psicóloga perguntou-me:
— O que é que Leonor quer para si?
Não soube responder naquele dia. Mas voltei semana após semana até conseguir dizer:
— Quero voltar a sentir-me viva.
Comecei a sair mais com a Joana; levei os miúdos ao cinema pela primeira vez em anos; inscrevi-me num curso de costura na junta de freguesia. Aos poucos fui recuperando pedaços de mim que julgava perdidos para sempre.
O Rui continuava ausente — agora já nem fazia questão de esconder as mensagens da Marta. Um dia chegou tarde e disse apenas:
— Vou sair de casa por uns tempos.
Não chorei. Não implorei. Apenas disse:
— Faz o que quiseres.
Os miúdos ficaram em choque; Matilde chorou durante dias; Tomás fechou-se ainda mais no seu mundo rebelde. Mas pela primeira vez em muitos anos senti um alívio estranho — como se finalmente pudesse respirar sem medo.
Os meses seguintes foram difíceis: contas para pagar sozinha, olhares curiosos dos vizinhos, perguntas dos filhos às quais não sabia responder. Mas também foram meses de descoberta: aprendi a gostar da minha própria companhia; fiz novas amigas no curso de costura; comecei a sonhar outra vez.
Hoje olho para trás e vejo tudo com outros olhos. O Rui casou-se com a Marta; vejo-os às vezes na vila e já não dói tanto como antes. Os miúdos cresceram — Matilde está na universidade em Coimbra, Tomás trabalha numa oficina em Viseu e já me perdoou por tudo o que não consegui evitar.
Às vezes pergunto-me se podia ter feito diferente; se devia ter saído mais cedo ou lutado mais pelo nosso casamento. Mas depois lembro-me das palavras da minha mãe: “Não te percas por ninguém.” E percebo que foi preciso perder tudo para me reencontrar.
E vocês? Quantas vezes já se perderam antes de se reencontrarem? Será possível reconstruir uma vida depois das sombras do desamor?