As Consequências Inesperadas do Sacrifício de uma Mãe

— Mãe, não te esqueças que hoje tenho ensaio de teatro às cinco! — gritou a Matilde da porta da casa de banho, enquanto eu tentava, pela terceira vez naquela manhã, enviar mais um currículo online. O computador parecia pesar toneladas. Cada clique era um lembrete do tempo que tinha passado desde que deixei o meu emprego no escritório de contabilidade em Setúbal.

O relógio marcava 7h45. O cheiro do café misturava-se com o nervosismo que me percorria o corpo. O António, meu marido, já tinha saído para o trabalho há uma hora. Ele nunca compreendeu totalmente a minha decisão de deixar o emprego quando a Matilde começou a escola primária. “É só uma fase”, dizia ele, “logo voltas ao trabalho.” Mas os anos passaram e agora, aos 43, sinto-me como uma peça fora do puzzle.

A Matilde entrou na cozinha com a mochila às costas e um sorriso que me partia o coração. Tinha 13 anos e estava a começar o oitavo ano. Era tudo para mim. Lembro-me do primeiro dia de escola dela: as tranças mal feitas, o uniforme demasiado grande, e eu a chorar no carro depois de a deixar à porta. Decidi naquele dia que estaria sempre presente — nas festas, nas reuniões, nos ensaios de teatro e até nas tardes de estudo.

Mas agora… agora sentia-me invisível. As entrevistas de emprego eram cada vez mais raras. Quando me chamavam, olhavam para o meu currículo e viam um buraco de sete anos. “O que fez durante este tempo?”, perguntavam com aquele tom condescendente. “Fui mãe”, respondia eu, tentando não parecer envergonhada. Mas sentia-me sempre julgada.

O António começou a chegar mais tarde a casa. Dizia que era por causa do trânsito ou das reuniões intermináveis. Mas eu sabia que era mais do que isso. As discussões começaram a ser frequentes. “Não podes ficar assim para sempre, Leonor”, dizia ele numa dessas noites em que a Matilde já dormia. “Precisas de fazer alguma coisa da tua vida.”

— Achas que não faço nada? — respondi-lhe uma vez, com lágrimas nos olhos. — Achas que cuidar da nossa filha não é nada?

Ele suspirou e virou-se para o lado na cama. O silêncio entre nós tornou-se ensurdecedor.

Os meus pais também não ajudavam. A minha mãe ligava quase todos os dias.

— Leonor, já viste a tua prima Rita? Está a trabalhar num banco em Lisboa! E tu? Ainda em casa?

Sentia-me esmagada pelas expectativas dos outros e pela minha própria culpa. Tinha medo de ter perdido quem era antes de ser mãe.

Numa manhã chuvosa de novembro, recebi um email: “Agradecemos o seu interesse, mas optámos por outro candidato.” Era o décimo segundo naquele mês. Fechei o portátil com força e fui à janela ver a chuva cair sobre os telhados da cidade.

A Matilde chegou da escola nesse dia mais cedo do que o habitual. Trazia os olhos vermelhos.

— O que se passa, filha?

— Nada… — murmurou ela, largando a mochila no chão.

Insisti até ela desabar:

— As outras raparigas dizem que sou mimada porque estás sempre comigo… Que não sei fazer nada sozinha…

Senti um aperto no peito. Será que estava mesmo a prejudicá-la com o meu excesso de presença? Será que o meu sacrifício estava a sufocá-la?

Nessa noite, sentei-me à mesa da cozinha com o António.

— Temos de falar sobre nós… sobre tudo isto — disse-lhe, sem conseguir esconder a voz trémula.

Ele olhou-me nos olhos pela primeira vez em semanas.

— Eu sei que tens feito tudo pela Matilde… mas também tens de pensar em ti, Leonor. Não és só mãe.

As palavras dele ecoaram na minha cabeça durante dias.

Comecei então a procurar pequenos trabalhos: dei explicações de matemática a vizinhos, ajudei uma amiga com a contabilidade da loja dela, inscrevi-me num curso online para atualizar conhecimentos. Não era fácil — sentia-me velha entre os jovens do curso, insegura cada vez que tinha de aprender algo novo.

Certa tarde, enquanto ajudava a Matilde com os trabalhos de casa, ela olhou para mim e disse:

— Mãe… gosto quando estás comigo… mas também gostava de te ver feliz.

Foi como se alguém tivesse acendido uma luz dentro de mim. Percebi que estava na altura de me reencontrar — não só por mim, mas também por ela.

No Natal desse ano, sentei-me com os meus pais e contei-lhes tudo: as recusas, as dúvidas, os medos.

— Não és menos por teres ficado em casa — disse o meu pai, surpreendendo-me. — Mas mereces ser feliz também.

Aos poucos, fui reconstruindo a minha confiança. Consegui um estágio numa pequena empresa local. O salário era baixo, mas sentia-me viva outra vez. A Matilde começou a ganhar autonomia; já ia sozinha para os ensaios e fazia novas amizades sem precisar tanto de mim.

O António e eu começámos a conversar mais — sobre sonhos antigos, sobre viagens adiadas, sobre quem éramos antes da rotina nos engolir.

Hoje olho para trás e vejo uma mulher diferente: marcada pelo amor incondicional à filha, mas também pelas cicatrizes da dúvida e do medo. Sei que não há respostas certas quando se trata de família e sacrifício.

Pergunto-me muitas vezes: será possível ser boa mãe sem perdermos quem somos? Quantas mulheres vivem esta luta silenciosa todos os dias? E vocês… já sentiram este vazio depois de darem tudo por alguém?