As Casas dos Outros: A Minha Vida Entre as Paredes da Herança
— Ana, não podes simplesmente decidir tudo sozinha! — gritou a minha tia Lurdes, batendo com força na mesa da sala, onde os papéis da herança estavam espalhados como destroços de um naufrágio. O eco da sua voz ressoou pelas paredes frias da casa dos meus pais, agora vazia, como se até as memórias tivessem medo de se mostrar.
Olhei para ela, sentindo o peso dos olhares dos outros familiares: o meu primo Rui, sempre com aquele sorriso cínico; a minha irmã mais nova, Mariana, que não dizia nada mas cujos olhos suplicavam por paz; e o tio António, que nunca aparecia em lado nenhum mas agora estava ali, pronto a reclamar o que julgava ser seu por direito.
Por dentro, eu gritava. Gritava de dor, de raiva, de cansaço. Desde o acidente que levou os meus pais e o meu irmão numa noite chuvosa na estrada nacional, a minha vida tinha-se tornado uma sucessão de funerais, advogados e discussões. A minha avó, que sempre fora o pilar da família, partiu pouco depois — dizem que de tristeza. Fiquei eu, sozinha com as chaves de casas que nunca quis ter.
— Não é uma questão de decidir sozinha — respondi, tentando manter a voz firme. — É uma questão de respeito pelo que os meus pais queriam. Eles deixaram tudo por escrito.
— Por escrito? — interrompeu Rui, rindo-se. — Os mortos não falam, Ana. Agora somos nós que temos de resolver isto.
A raiva subiu-me à garganta como um nó. Lembrei-me das tardes em que brincávamos todos juntos no quintal da casa da avó, antes de tudo se desmoronar. Como é que chegámos aqui? Como é que o amor se transformou em ganância?
As casas eram três: a dos meus pais em Coimbra, o apartamento da avó em Lisboa e uma pequena casa de campo em Tomar. Cada uma carregada de memórias, cada uma agora motivo de discórdia. Mariana queria vender tudo e ir viver para Londres com o namorado inglês. Rui queria ficar com o apartamento da avó porque “sempre foi mais próximo dela” — mentira descarada. Tia Lurdes falava em dividir tudo ao milímetro, como se a vida pudesse ser repartida em partes iguais.
Eu só queria paz. Queria poder entrar na casa dos meus pais sem sentir que estava a invadir um túmulo. Queria poder sentar-me no sofá onde a minha mãe me contava histórias sem ouvir vozes a discutir sobre escrituras e partilhas.
Naquela noite, depois de todos saírem deixando atrás de si um rasto de acusações e portas batidas, sentei-me sozinha na cozinha. O relógio marcava duas da manhã. O silêncio era tão pesado que quase podia ouvi-lo respirar ao meu lado.
Peguei numa chávena de chá frio e olhei para a fotografia dos meus pais na parede. Senti as lágrimas escorrerem-me pelo rosto sem pedir licença. Senti-me pequena, perdida entre paredes que já não me protegiam.
No dia seguinte, Mariana apareceu cedo. Trazia os olhos inchados e uma mala pequena.
— Vou embora hoje — disse ela, sem rodeios. — Não aguento mais isto.
— Mariana…
— Não vale a pena, Ana. Já decidiste tudo por nós. Fica com as casas. Fica com as memórias. Eu só quero esquecer.
Vi-a sair pela porta sem olhar para trás. O som dos seus passos na calçada foi como um adeus definitivo à infância.
Os dias seguintes foram um desfile de advogados e reuniões frias no escritório do Dr. Mário, o notário da família. Cada reunião era uma batalha: Rui exigia mais do que lhe cabia; tia Lurdes ameaçava levar tudo a tribunal; tio António tentava convencer-me a vender tudo por um preço ridículo a um “amigo” dele.
Comecei a duvidar de mim própria. Será que estava a ser egoísta? Será que devia simplesmente vender tudo e recomeçar noutro lugar? Mas cada vez que pensava nisso, lembrava-me do cheiro do café pela manhã na casa dos meus pais, do som das gargalhadas na varanda da avó ao domingo à tarde.
Uma noite, acordei sobressaltada com barulhos vindos do rés-do-chão. Desci devagar e encontrei Rui na cozinha, remexendo nas gavetas.
— O que estás a fazer aqui? — perguntei, tentando esconder o medo na voz.
Ele virou-se devagar, com um sorriso frio.
— Só vim buscar umas coisas minhas…
— Não tens nada aqui — respondi.
Ele aproximou-se demasiado.
— Achas mesmo que isto tudo te pertence? Achas que és melhor do que nós só porque foste a preferida dos teus pais?
Senti um arrepio gelado percorrer-me a espinha. Rui saiu batendo a porta com força suficiente para acordar metade do bairro.
Na manhã seguinte, encontrei as janelas da sala partidas. Alguém tinha atirado pedras durante a noite. Liguei à polícia mas disseram-me que não podiam fazer muito sem provas.
A solidão tornou-se insuportável. Comecei a evitar sair de casa. Os vizinhos cochichavam quando me viam passar — “coitada da Ana”, diziam uns; “ela deve estar rica agora”, diziam outros.
Um dia recebi uma carta anónima: “Vende tudo antes que seja tarde”. As mãos tremiam-me enquanto lia aquelas palavras ameaçadoras.
Procurei refúgio nas poucas amizades verdadeiras que me restavam. A minha amiga Sofia vinha visitar-me sempre que podia.
— Não deixes que te destruam — dizia ela enquanto me abraçava. — Isto vai passar.
Mas eu já não sabia se queria lutar ou fugir.
O ponto de rutura chegou quando recebi uma intimação judicial: tia Lurdes tinha avançado com um processo para contestar o testamento dos meus pais. Senti-me traída por todos os lados.
Na audiência no tribunal, olhei para ela e vi apenas uma mulher amargurada pela vida, incapaz de aceitar as escolhas dos outros.
O juiz leu o testamento em voz alta: “Deixo as casas à minha filha Ana porque sei que ela cuidará delas como cuidou sempre da nossa família”.
Senti um nó na garganta ao ouvir aquelas palavras escritas pela mão trémula do meu pai pouco antes do acidente.
O processo arrastou-se durante meses. Perdi peso, perdi sono, perdi vontade de viver. Mas ganhei algo inesperado: força. Uma força bruta nascida da dor e da necessidade de sobreviver.
No final, o tribunal deu-me razão. As casas ficaram comigo. Mas à custa de quê?
Hoje caminho pelos corredores vazios destas casas como quem percorre um campo de batalha depois da guerra: tudo está no lugar mas nada é igual.
Às vezes sento-me no jardim da casa dos meus pais e fecho os olhos para ouvir as vozes do passado misturadas ao vento.
Pergunto-me se valeu a pena lutar tanto por paredes e telhados quando perdi quase toda a família pelo caminho.
Será que algum dia estas casas voltarão a ser lares? Ou serão sempre apenas recordações do que foi perdido?