Arrumei-lhe as malas e mandei-o embora: O preço de escolher a minha liberdade
— Vais mesmo fazer isto, Maria do Carmo? — perguntou-me o António, com a voz embargada, parado à porta da sala, as malas feitas aos seus pés.
O relógio da parede marcava quase meia-noite. O silêncio da casa era cortado apenas pelo tique-taque insistente e pelo som abafado da chuva a bater nas janelas. Eu tremia, mas não era do frio. Era de medo, de raiva, de uma tristeza antiga que me corroía há anos.
— Vou, António. Já chega. — A minha voz saiu mais firme do que eu esperava. — Não aguento mais esta vida de silêncio e mágoa.
Ele olhou-me como se eu fosse uma estranha. Depois de quarenta anos juntos, era como se só agora me visse realmente. Não houve gritos, nem lágrimas. Só um vazio pesado, como se tudo o que tínhamos vivido tivesse sido apagado numa noite.
Quando a porta se fechou atrás dele, sentei-me no sofá e chorei como há muito não chorava. Lembrei-me da Maria do Carmo de vinte anos, cheia de sonhos, que queria viajar, aprender línguas, talvez até escrever um livro. Mas depois vieram os filhos, a escola, as contas para pagar, o António sempre ausente ou calado, e fui ficando pequenina dentro de mim mesma.
No dia seguinte, acordei com o telefone a tocar. Era a minha filha mais velha, a Joana.
— Mãe, o que é que fizeste? O pai ligou-me a chorar! Como é que foste capaz?
— Joana, filha, eu precisava…
— Precisavas? E nós? Pensaste em nós? — interrompeu-me ela, magoada. — Agora toda a gente vai falar. Os vizinhos já sabem! A avó está em choque!
Desligou antes que eu pudesse explicar. Senti-me mais sozinha do que nunca. O meu filho mais novo, o Miguel, enviou-me uma mensagem curta: “Não percebo nada disto. Preciso de tempo.” Nem uma palavra de apoio.
Os dias seguintes foram um desfile de telefonemas frios e olhares reprovadores na rua. Na mercearia, a dona Rosa sussurrava com a vizinha ao meu lado. No café, o senhor Manuel evitava olhar-me nos olhos. Até na missa senti os cochichos atrás de mim.
A minha mãe veio visitar-me dois dias depois. Entrou sem dizer palavra e sentou-se à mesa da cozinha.
— Maria do Carmo, tu sempre foste tão sensata… Porquê agora? Aos sessenta e sete anos? Que vergonha é esta?
Olhei para ela e vi nos seus olhos o medo de ser falada na vila, o peso das gerações que sempre engoliram tudo em nome da família.
— Mãe, eu já não era feliz há muito tempo. O António nunca me ouviu, nunca me viu…
— Isso é razão para mandares um homem embora? E os teus filhos? Pensaste neles?
— Pensei em mim pela primeira vez na vida — respondi baixinho.
Ela abanou a cabeça e saiu sem se despedir.
As noites tornaram-se longas e frias. A casa parecia maior sem o António, mas também mais vazia. Comecei a escrever num caderno velho para não enlouquecer com o silêncio. Escrevia sobre as pequenas violências diárias: as palavras cortantes do António quando eu tentava falar dos meus sonhos; o desprezo quando lhe pedia companhia para um passeio; os aniversários esquecidos; as discussões abafadas para não acordar os miúdos.
Lembrei-me do dia em que ele me disse: “Tu és boa mulher para estar em casa.” Como se eu não tivesse direito ao mundo lá fora.
Os meus netos deixaram de vir aos fins-de-semana. A Joana dizia que estavam ocupados com as atividades da escola, mas eu sabia que era mais fácil assim. O Miguel passou meses sem me visitar. Senti falta do barulho deles pela casa, dos desenhos colados no frigorífico.
Uma tarde, ao regressar do supermercado, encontrei o António à porta. Trazia um saco com alguns livros meus e uma caixa com fotografias antigas.
— Pensei que podias querer isto — disse ele, sem me olhar nos olhos.
Ficámos ali parados uns segundos. Eu queria pedir-lhe desculpa por tudo o que não fomos capazes de ser um para o outro. Mas as palavras ficaram presas na garganta.
— Espero que sejas feliz — murmurou ele antes de se afastar.
Fechei a porta devagar e sentei-me no chão da sala a folhear as fotografias: os nossos filhos pequenos na praia da Comporta; eu e ele jovens num piquenique; a primeira casa onde vivemos juntos. Chorei por tudo o que perdemos e por tudo o que nunca tivemos coragem de viver.
O tempo foi passando e fui aprendendo a viver sozinha. Comecei a fazer caminhadas ao nascer do sol pelos campos dourados do Alentejo. Inscrevi-me num curso de pintura na biblioteca municipal. Fiz amizade com a Ana Paula, uma vizinha viúva que também sabia o que era ser julgada pela vila inteira.
Mas a dor da rejeição dos meus filhos continuava a pesar-me no peito. No Natal desse ano, preparei a ceia sozinha. Pus dois pratos na mesa por hábito e depois ri-me da minha própria tolice. Liguei à Joana para desejar-lhe boas festas.
— Mãe… — ouvi-a suspirar do outro lado — Não sei se algum dia vou conseguir perdoar-te pelo que fizeste ao pai.
— Eu compreendo, filha — respondi com lágrimas nos olhos — Mas espero que um dia consigas perceber porque precisei de escolher-me a mim própria.
A chamada terminou num silêncio pesado.
No Ano Novo fui à missa sozinha e acendi uma vela por cada membro da minha família. Pedi coragem para continuar e serenidade para aceitar aquilo que não podia mudar.
Com o tempo, algumas pessoas começaram a falar comigo outra vez. A dona Rosa ofereceu-me um bolo de laranja “porque ninguém merece passar tanto tempo sozinha”. O senhor Manuel ajudou-me a arranjar uma torneira avariada sem cobrar nada.
A Ana Paula convidou-me para ir com ela ao Porto ver uma exposição de arte moderna. Pela primeira vez em muitos anos senti-me leve, quase feliz.
Mas ainda hoje me pergunto: será que fiz bem? Terá valido a pena perder quase tudo para finalmente ser fiel a mim mesma? Ou será que há escolhas na vida que nos condenam à solidão para sempre?
E vocês? Já tiveram de escolher entre vocês próprios e aqueles que amam? Será possível encontrar perdão – dos outros ou de nós mesmos – depois de tanto sofrimento?