Arrependimento Tardio: O Dia em que Perdi a Minha Família

— Não vás, Miguel. Por favor, não vás — implorou a Ana, com os olhos marejados de lágrimas, agarrando-me o braço como se a força do seu desespero pudesse impedir o inevitável.

Naquele instante, o som da chuva a bater nas janelas misturava-se ao soluçar dela. O cheiro do café frio na mesa e o relógio a marcar as três da manhã eram testemunhas silenciosas do fim do nosso casamento. Eu sentia o coração apertado, mas a minha cabeça estava cheia de certezas que hoje me parecem ridículas.

— Ana, eu… eu preciso disto. Preciso de ser feliz — balbuciei, sem conseguir encará-la nos olhos. O nome da Sofia ecoava-me na mente como uma promessa de liberdade, de paixão, de uma vida diferente daquela rotina que me sufocava há anos.

Ela largou-me o braço devagar, como quem percebe que perdeu uma batalha. O silêncio que se seguiu foi mais doloroso do que qualquer grito. Peguei na mala, olhei uma última vez para o quarto dos miúdos — o Pedro e a Mariana dormiam, alheios à tragédia que se desenrolava na sala. Saí de casa com a sensação de que estava a fazer o certo, convencido de que merecia mais.

Os primeiros meses com a Sofia foram um turbilhão: jantares fora, viagens espontâneas pelo Douro, noites sem fim em Lisboa. Sentia-me jovem outra vez, desejado, vivo. Mas a euforia foi dando lugar ao desconforto. Pequenas discussões começaram a surgir: ela queria mais atenção, eu sentia falta dos meus filhos. As mensagens da Ana eram cada vez mais curtas e frias: “O Pedro está doente”, “A Mariana tem saudades”.

A minha mãe deixou de me atender o telefone durante semanas. O meu pai, homem de poucas palavras, disse-me apenas: — Fizeste as tuas escolhas, agora vive com elas.

No Natal desse ano, fui buscar os miúdos para passarem a véspera comigo e com a Sofia. A Mariana chorou o caminho todo no carro. O Pedro recusou-se a falar comigo. A Sofia tentou ser simpática, mas era tudo forçado. Senti-me um estranho na minha própria vida.

Com o tempo, percebi que a Sofia não era a solução para os meus problemas — era apenas uma fuga. As discussões tornaram-se mais frequentes e violentas. Uma noite, depois de uma discussão acesa sobre ciúmes, ela atirou-me à cara:

— Tu nunca vais esquecer a tua família! Nunca vais ser só meu!

E tinha razão. Eu nunca consegui esquecer a Ana, nem os meus filhos. Comecei a beber mais do que devia, a chegar tarde a casa. O trabalho começou a correr mal; fui despedido por faltar demasiado. A Sofia acabou por me deixar, dizendo que não aguentava mais viver com um homem partido.

Fiquei sozinho num apartamento pequeno em Almada, rodeado de fotografias antigas que já não faziam sentido. Tentei ligar à Ana dezenas de vezes. Ela atendia, mas era sempre fria:

— Precisas de alguma coisa para os miúdos? — perguntava, sem emoção.

— Ana… desculpa. Eu errei. Eu amo-te — arrisquei uma noite, embriagado pela saudade e pelo álcool.

— Miguel, já não há nada para salvar. Segue com a tua vida — respondeu ela, antes de desligar.

O Pedro começou a evitar-me. A Mariana cresceu sem querer falar comigo sobre nada importante. Vi-os crescer à distância, como se fosse um estranho. No aniversário dos 18 anos do Pedro, tentei aparecer de surpresa à porta da Ana. Ela abriu a porta, olhou-me nos olhos e disse:

— Não tens direito de estar aqui. O Pedro não quer ver-te.

Senti-me morrer por dentro. Passei horas sentado no carro, à porta de casa deles, a olhar para as luzes acesas e a imaginar como seria se nunca tivesse saído naquela noite chuvosa.

Os anos passaram e fui perdendo tudo: amigos, família, trabalho. A solidão tornou-se a minha única companhia. Comecei a escrever cartas à Ana, cartas que nunca enviei. Numa delas escrevi:

“Se pudesse voltar atrás, teria ficado. Teria lutado por nós. Teria sido melhor marido, melhor pai. Mas agora só me resta este vazio.”

Um dia, cruzei-me com a Ana no supermercado. Ela estava diferente: mais forte, mais segura. Sorriu-me educadamente, mas nos olhos dela vi apenas distância.

— Olá, Miguel. Espero que estejas bem — disse, como se falasse com um conhecido qualquer.

— Ana… desculpa. Por tudo.

Ela suspirou e respondeu:

— Já não dói, Miguel. Mas também já não importa.

Fiquei ali parado, com um nó na garganta, enquanto ela se afastava pelo corredor das frutas.

Hoje vivo sozinho, num T1 pequeno em Setúbal. Os meus filhos são adultos e têm as suas vidas. Às vezes mandam-me uma mensagem no Natal ou no aniversário, mas nunca mais fomos família.

Todos os dias acordo com o peso do arrependimento. Pergunto-me como teria sido se tivesse ficado, se tivesse lutado pela Ana e pelos miúdos. Será que algum dia vou conseguir perdoar-me? Será que mereço uma segunda oportunidade, mesmo sabendo que ela nunca virá?

E vocês, já tomaram alguma decisão da qual se arrependem para sempre? Como se vive com o peso do passado quando já não há volta a dar?