Areia Quente, Palavras Frias: O Dia em Que Tudo Mudou na Praia da Figueirinha

— Achas mesmo que isso é roupa de se usar em público? — A voz dele cortou o ar quente da tarde, mais afiada que as conchas sob os meus pés. Eu estava deitada na toalha, sentindo o sal secar na pele, quando aquele homem, de uns cinquenta anos, se aproximou com o peito inchado de indignação. Olhei para cima, semicerrando os olhos contra o sol. Ao meu lado, a minha irmã Mariana ficou tensa, os dedos cravados no livro que fingia ler.

— Desculpe? — perguntei, tentando manter a voz firme. O meu biquíni era igual a tantos outros na Praia da Figueirinha naquele domingo de junho. Mas para ele, parecia ser uma afronta pessoal.

— Isto é uma praia de famílias! — continuou ele, agora falando alto o suficiente para atrair olhares. — Não têm vergonha? Há crianças aqui!

Senti o rosto a arder. Mariana levantou-se num salto.

— O senhor não tem nada que se meter! — ripostou ela. — Se não gosta, olhe para outro lado!

As pessoas começaram a olhar. Uns riam-se discretamente, outros fingiam não ver. Mas alguém, mais à frente, levantou o telemóvel e começou a gravar. Senti-me exposta, como se estivesse nua e não apenas de biquíni.

O homem não recuou. — Isto é falta de respeito! No meu tempo, as mulheres sabiam comportar-se!

— No seu tempo? — ironizei, já sem conseguir conter a raiva. — Pois este é o nosso tempo!

Ele bufou e afastou-se, mas não sem antes lançar um último olhar de desprezo. O vídeo já estava feito. Não sabia ainda, mas aquela cena ia mudar tudo.

Voltámos a sentar-nos na toalha, mas a tarde perdeu o sabor. Mariana tentou animar-me:

— Não ligues. Gente assim não merece atenção.

Mas eu ligava. Sempre liguei. Cresci numa família onde as aparências importavam mais do que a verdade. A minha mãe era daquelas que me mandava trocar de roupa antes de sair de casa: “Vais assim? E se encontrares alguém conhecido?”

Quando cheguei a casa nesse dia, contei à minha mãe o que se tinha passado. Ela suspirou:

— Já viste? Eu bem te disse…

— Mãe! — interrompi-a, frustrada. — A culpa não é minha!

O meu pai ouviu do corredor e entrou na sala.

— O que se passa aqui?

Expliquei-lhe tudo. Ele ficou calado por um momento e depois disse:

— As pessoas deviam preocupar-se mais com a própria vida.

Fiquei surpreendida com o apoio dele. Mas a minha mãe continuava inquieta.

— E se alguém te reconhece no vídeo? — murmurou.

No dia seguinte acordei com o telemóvel a vibrar sem parar. Mensagens de amigas, notificações do Instagram e do TikTok: “És tu neste vídeo?” “Que coragem!” “Já viste isto?”

O vídeo tinha-se tornado viral durante a noite. Milhares de visualizações, comentários de apoio e também insultos. Uns diziam que eu era um exemplo de liberdade; outros chamavam-me nomes que nunca pensei ouvir dirigidos a mim.

No trabalho, os colegas olhavam-me de lado. A chefe chamou-me ao gabinete:

— Precisas de uns dias para ti? — perguntou, num tom estranho.

— Não… estou bem — menti.

À hora do almoço, recebi uma mensagem privada de uma rapariga desconhecida: “Obrigada por teres respondido àquele homem. Já passei pelo mesmo.”

Senti um nó na garganta. Não estava sozinha.

Mas a história não ficou por aí. Dois dias depois, saiu uma notícia online: “Homem que envergonhou mulheres na praia perde emprego após vídeo viral.” O nome dele estava lá, junto com o nome da empresa onde trabalhava.

Fiquei em choque. Não era isso que eu queria. Senti-me culpada — será que tinha ido longe demais?

À noite, em casa dos meus pais, discutimos o assunto à mesa.

— Ele mereceu — disse Mariana sem hesitar.

— Mas perder o emprego? — questionei eu, inquieta.

A minha mãe abanou a cabeça:

— As redes sociais são perigosas…

O meu pai ficou calado durante muito tempo antes de falar:

— Às vezes as consequências fogem ao nosso controlo.

Recebi mensagens anónimas a insultar-me. Outras pessoas diziam que eu era responsável pela desgraça daquele homem. Comecei a ter medo de sair à rua sozinha.

Uma noite sonhei com ele: estava sozinho numa sala vazia, a olhar para mim com olhos tristes e cansados. Acordei sobressaltada.

No fim-de-semana seguinte voltei à praia com Mariana. Senti todos os olhares em mim, mesmo que ninguém dissesse nada. Um grupo de raparigas aproximou-se:

— És tu do vídeo? — perguntou uma delas.

Assenti, envergonhada.

— Obrigada — disse outra. — Precisávamos disto.

Sorri-lhes, mas por dentro sentia-me dividida entre orgulho e culpa.

Dias depois recebi uma mensagem inesperada: era da filha do homem do vídeo.

“Queria só dizer que o meu pai está mal… Não estou a desculpar o que ele fez, mas está tudo muito difícil cá em casa.”

Fiquei horas a olhar para aquela mensagem sem saber o que responder.

Contei à Mariana e ela abraçou-me:

— Não és responsável pelas escolhas dele.

Mas será mesmo assim?

Hoje olho para trás e vejo como um momento pode mudar tantas vidas. Ainda me pergunto: até onde vai a responsabilidade de cada um nas consequências das suas ações? E será que alguma vez conseguimos controlar verdadeiramente aquilo que lançamos ao mundo?