Areia nos Sapatos, Mágoa no Coração: O Verão que Mudou a Minha Família

— Outra vez, Miguel? Vais mesmo dizer à tua tia que sim?

A minha voz saiu mais aguda do que queria. Senti o olhar dele, cansado, como se já tivesse ensaiado esta conversa mil vezes na cabeça. Estávamos sentados à mesa da cozinha, a loiça do jantar ainda por lavar, e o telemóvel dele vibrava com mais uma mensagem do grupo de família: “Então, já decidiram? A casa está reservada! Vai ser o máximo!” — assinava a tia Lurdes, com aqueles emojis irritantes de sol e mar.

Miguel suspirou. — Marta, é só uma semana. Eles querem mesmo que vamos. A minha mãe já está a contar com isso.

Fechei os olhos por um segundo, tentando conter a torrente de memórias do verão passado. O cheiro a protetor solar misturado com discussões abafadas, o calor insuportável dentro da casa alugada, as filas para o duche, as crianças da prima Susana a correrem e gritarem pela casa toda. E, acima de tudo, as contas. As malditas contas.

— Uma semana? — repeti. — Uma semana a ouvir a tua tia reclamar do preço do peixe, a tua mãe a dizer que eu não sei fazer arroz de marisco, o teu primo Rui a monopolizar o grelhador… E no fim, somos sempre nós a pagar mais porque “vocês é que têm dois ordenados fixos”. Não me peças para passar por isso outra vez.

Miguel baixou os olhos para as mãos. — Eu sei que não foi perfeito…

— Não foi perfeito? — interrompi, sentindo o sangue ferver-me nas veias. — Foi um desastre! Voltámos sem dinheiro para pagar a renda! Tivemos de pedir emprestado à minha irmã! E sabes quantas vezes pus os pés na praia? Três! Em sete dias! Porque alguém tinha sempre de ficar em casa com os miúdos ou ajudar na cozinha!

Ele ficou em silêncio. O silêncio dele era sempre pior do que qualquer discussão. Era como se me deixasse sozinha com todos os fantasmas daquela semana.

Lembro-me bem do primeiro dia. Chegámos à Figueira da Foz depois de quatro horas de viagem num carro atolado de malas e brinquedos de praia. A casa era grande nas fotografias, mas ao vivo parecia encolher à medida que cada familiar chegava com mais sacos e expectativas. A tia Lurdes distribuía tarefas como se fosse uma general em campo de batalha: “Marta, tu ficas responsável pelos pequenos-almoços! Miguel, vais buscar pão todas as manhãs!” E assim começou o nosso calvário.

No segundo dia, a prima Susana esqueceu-se de comprar fraldas para o bebé e pediu-me para ir ao supermercado. “Depois acerto contigo”, disse ela, mas nunca acertou. No terceiro dia, o tio Armando decidiu fazer sardinhada para todos e pediu-nos para avançar com o dinheiro porque “esqueceu-se da carteira”. No fim da semana, quando fizemos as contas, faltavam quase 200 euros — e ninguém sabia explicar porquê.

As discussões começaram logo na primeira noite: “Quem deixou as toalhas molhadas em cima da cama?”, “Porque é que ninguém lavou a loiça?”, “Os miúdos não podem ver televisão até tarde!” Eu tentava manter-me à margem, mas era impossível não ser arrastada para o turbilhão.

Uma noite, depois de todos finalmente adormecerem, sentei-me na varanda com um copo de vinho barato e chorei baixinho. Senti-me sozinha no meio daquela multidão barulhenta. Miguel apareceu ao meu lado e tentou abraçar-me.

— Desculpa — murmurou ele. — Não pensei que fosse ser assim.

— Tu nunca pensas — respondi, amarga. — Achas sempre que vai correr tudo bem porque são família. Mas eu não sou deles, Miguel. Nunca serei.

Ele não respondeu. Ficámos ali sentados em silêncio até o vinho acabar.

No último dia, quando finalmente arrumámos as malas para voltar a Lisboa, prometi a mim mesma: nunca mais. Nunca mais me deixaria arrastar para aquele teatro de aparências e obrigações familiares.

Agora, um ano depois, cá estamos outra vez. O convite chegou como uma pedra no sapato: “A casa está reservada! Vai ser o máximo!” Sinto um nó no estômago só de pensar.

Miguel olha para mim com aqueles olhos castanhos tristes. — Se não quiseres ir… eu digo que não.

Mas sei que ele quer ir. Quer agradar à mãe, à tia Lurdes, manter viva a ilusão da família unida. E eu? Eu só quero paz.

— Não sei se consigo passar por isso outra vez — digo-lhe, quase num sussurro. — Não sei se vale a pena sacrificar a nossa tranquilidade por uma semana de discussões e contas mal feitas.

Ele levanta-se e vai lavar a loiça em silêncio. Sinto-me culpada por ser sempre eu a pôr travões nos sonhos dele. Mas também me sinto cansada de ser sempre eu a pagar o preço das ilusões dos outros.

Naquela noite não dormi. Fiquei a olhar para o teto escuro do nosso quarto alugado (ainda não conseguimos comprar casa), a pensar em todas as pequenas feridas que aquela família me infligiu ao longo dos anos: os comentários passivo-agressivos sobre o meu trabalho (“Jornalista? Isso é profissão?”), as comparações constantes com as outras noras (“A Ana faz uns bolos maravilhosos!”), os olhares reprovadores quando recuso mais uma fatia de bolo porque estou cansada demais para sorrir.

No dia seguinte, Miguel acordou cedo e saiu sem dizer nada. Quando voltou ao fim da manhã, trazia um ramo de flores do mercado e um café quente do sítio onde costumávamos ir quando namorávamos.

— Não quero obrigar-te a nada — disse ele, pousando as flores na mesa. — Se não formos, não formos. Mas gostava que tentasses ver isto pelos meus olhos: são só uns dias juntos. Talvez este ano seja diferente.

Olhei para ele e vi o rapaz que conheci há dez anos atrás: otimista, ingénuo, sempre pronto a acreditar no melhor das pessoas. Senti uma pontada de ternura misturada com raiva — raiva por ele nunca perceber o peso que tudo isto tem para mim.

— E se não for diferente? — perguntei-lhe. — E se for igual ou pior?

Ele encolheu os ombros. — Voltamos mais cedo. Ou então prometo que este ano faço eu as contas e ninguém fica prejudicado.

Queria acreditar nele. Queria mesmo. Mas sabia que era mentira: naquela família ninguém muda realmente; só aprendem novas maneiras de fingir que está tudo bem.

À noite liguei à minha irmã para desabafar.

— Vais outra vez meter-te nisso? — perguntou ela, incrédula. — Marta… tu és maluca.

— Talvez seja — respondi-lhe. — Mas também sou mulher dele. E ele precisa disto mais do que eu preciso da minha paz.

No fim acabei por ceder. Disse-lhe que sim, mas com condições: nada de avançar dinheiro para ninguém; cada um paga o seu; se houver discussões, vamos dar uma volta à praia sozinhos; e se eu disser “chega”, voltamos para casa sem discussões.

Miguel sorriu como uma criança no Natal e abraçou-me com força.

Agora escrevo isto com as malas feitas ao lado da porta e um aperto no peito. Sei que vou arrepender-me; sei que vou voltar cansada e desiludida; mas também sei que há batalhas que se escolhem não pela vitória, mas pelo amor que ainda queremos salvar.

Pergunto-me: quantas vezes sacrificamos a nossa paz pelo bem dos outros? Quantas vezes dizemos sim quando devíamos dizer não? Será que vale mesmo a pena manter laços só porque são família?