Aquela Noite em que Expulsei a Minha Filha e o Namorado: O Limite de uma Mãe Portuguesa

— Não acredito que trouxeste o Rui para cá outra vez sem me dizeres nada! — gritei, a voz a tremer entre raiva e exaustão, mal entrei na sala e vi os dois sentados no sofá, como se nada fosse.

A Ana olhou para mim com aquele ar de desafio que só aprendeu a usar depois dos dezoito anos. O Rui, com o boné virado ao contrário e as sapatilhas sujas em cima do tapete novo, nem se dignou a levantar-se.

— Mãe, não faças uma cena. Só viemos jantar — respondeu ela, como se eu fosse uma criança birrenta.

O cheiro a pizza barata misturava-se com o fumo do cigarro do Rui. Senti o estômago dar voltas. Aquela sala era o meu refúgio depois de dias longos no hospital, onde trabalho como auxiliar de ação médica. Mas desde que a Ana começou a namorar com o Rui, há seis meses, tudo mudou.

Lembro-me da primeira vez que o trouxe cá. Era um domingo à tarde. Ele parecia simpático, até ajudou a pôr a mesa. Mas depressa percebi que havia algo nele que não batia certo: os olhares fugidios, as respostas secas, o telemóvel sempre escondido. E depois vieram as ausências da Ana, as chamadas não atendidas, as notas a descer na faculdade.

— Não é só jantar, Ana! — atirei, tentando controlar as lágrimas. — Vocês não têm respeito nenhum por mim nem pela casa onde cresci! Sabes quantos sacrifícios fiz para te dar tudo?

Ela revirou os olhos. — Lá vem outra vez o discurso do sacrifício… Mãe, tu nunca confias em mim!

O Rui bufou e murmurou algo entre dentes. Senti o sangue ferver.

— Rui, podes sair da minha casa agora? — pedi, tentando manter a dignidade.

Ele levantou-se devagar, com um sorriso cínico. — Não te preocupes, dona Teresa. Já íamos embora mesmo.

A Ana agarrou-lhe no braço. — Não vais lado nenhum sem mim!

Foi aí que percebi: estava a perder a minha filha para alguém que não lhe fazia bem. O medo misturava-se com raiva e culpa. Lembrei-me da minha mãe, da forma como me expulsou de casa quando engravidei da Ana aos vinte anos. Jurei que nunca faria o mesmo à minha filha.

Mas naquela noite, já não era eu quem falava. Era a dor acumulada de meses de discussões, portas batidas e silêncios gelados.

— Se saíres por essa porta com ele hoje, não voltas a entrar nesta casa! — gritei, sem reconhecer a minha própria voz.

A Ana ficou imóvel por um segundo. Vi-lhe nos olhos o medo, mas também uma determinação que me assustou.

— Então é isso? Vais escolher por mim? — perguntou ela, a voz embargada.

— Estou a escolher por mim! — respondi. — Não aguento mais esta falta de respeito!

O Rui puxou-a e saíram os dois sem olhar para trás. A porta bateu com força suficiente para estremecer as paredes.

Fiquei ali parada, sozinha na sala desarrumada, com o cheiro a tabaco e pizza entranhado nas cortinas. Sentei-me no sofá e chorei como há anos não chorava.

Os dias seguintes foram um vazio. O silêncio em casa era ensurdecedor. No trabalho, os colegas notaram que eu estava diferente. A dona Lurdes tentou puxar conversa:

— Teresa, está tudo bem? Pareces tão em baixo…

Encolhi os ombros. Como explicar que expulsei a minha filha de casa? Que me sentia uma mãe horrível?

Na rua, via mães com filhas adolescentes e sentia inveja da leveza delas. Lembrei-me das noites em que ficava acordada à espera da Ana chegar das festas, dos telefonemas para saber se precisava de boleia, dos abraços apertados quando ela tinha pesadelos.

Uma semana passou sem notícias dela. O meu telemóvel estava sempre na mão, à espera de uma mensagem ou chamada que não vinha.

No domingo seguinte, fui à missa como sempre faço desde pequena. Rezei por ela, pedi à Nossa Senhora que a protegesse onde quer que estivesse. Quando voltei para casa, encontrei um envelope debaixo da porta.

Era uma carta da Ana:

“Mãe,

Sei que estás magoada comigo. Eu também estou magoada contigo. O Rui não é perfeito, mas é quem eu escolhi agora. Preciso de espaço para errar e aprender sozinha. Não quero perder-te, mas também não quero viver sob as tuas regras para sempre.

Amo-te,
Ana”

Li aquelas palavras vezes sem conta. Senti-me dividida entre orgulho e tristeza. Orgulho porque ela tinha coragem de seguir o seu caminho; tristeza porque esse caminho era longe de mim.

Nessa noite sonhei com ela em criança: corria pelo jardim do prédio com os joelhos esfolados e vinha pedir-me colo quando caía. Agora já não vinha pedir colo; queria voar sozinha.

No trabalho, comecei a falar mais com a dona Lurdes sobre isto.

— Sabes Teresa — disse ela — às vezes temos de deixar os filhos baterem com a cabeça para aprenderem…

Mas será mesmo assim? E se ela se magoar a sério? E se nunca mais voltar?

Os dias passaram devagar. A casa continuava vazia e fria. Comecei a arrumar as coisas dela: livros da faculdade, fotografias antigas, peluches esquecidos no armário. Cada objeto era uma punhalada no peito.

Uma tarde, ao arrumar o quarto dela, encontrei um diário escondido numa gaveta. Hesitei antes de abrir — mas abri.

Li páginas cheias de dúvidas, inseguranças e sonhos. Descobri que ela tinha medo de me desiludir; que sentia falta do pai (que nos deixou quando ela tinha dez anos); que queria ser independente mas não sabia como.

Chorei outra vez. Percebi que talvez tivesse sido dura demais; talvez tivesse exigido dela aquilo que ninguém me deu: compreensão.

Na sexta-feira seguinte ouvi alguém bater à porta. O coração disparou.

Era ela — sozinha, olhos inchados de chorar.

— Posso entrar? — perguntou baixinho.

Abri-lhe os braços sem dizer nada. Chorámos juntas na entrada durante minutos intermináveis.

— Desculpa mãe… — sussurrou ela.

— Desculpa eu… — respondi — Só quero que sejas feliz.

Sentámo-nos no sofá e falámos durante horas: sobre o Rui, sobre nós, sobre medos e sonhos adiados. Não resolvemos tudo nessa noite; talvez nunca resolvamos tudo.

Mas aprendi que ser mãe é aceitar não controlar tudo; é amar mesmo quando dói; é saber pedir desculpa quando erramos.

Agora pergunto-me: quantas mães portuguesas já passaram por isto? Quantas vezes deixamos o orgulho falar mais alto do que o amor? Será possível proteger sem sufocar? Gostava tanto de saber como outras mães lidaram com situações assim…