Aposentei-me para Cuidar da Família, Mas Fui Esquecida: O Desabafo de Vitória
— Miguel, vais chegar para jantar hoje? — perguntei, segurando o telemóvel com as mãos trémulas, enquanto o cheiro do arroz de pato enchia a cozinha. O relógio marcava quase oito da noite e a mesa estava posta há mais de uma hora.
Do outro lado, ouvi a voz apressada do meu filho:
— Mãe, hoje não dá. Sofia está cansada, vamos pedir qualquer coisa pelo telemóvel. Não te preocupes.
Desliguei devagar, tentando não deixar transparecer a mágoa. O arroz de pato, que passara a tarde a preparar, ficou ali, intocado, como tantas outras refeições nos últimos meses. Desde que me reformei da escola primária onde dei aulas durante trinta anos, imaginei que teria finalmente tempo para a família. Sonhava com almoços longos ao domingo, risos de netos que ainda não vieram, conversas à volta da mesa. Mas a casa estava cada vez mais silenciosa.
A minha filha, Clara, ligava-me de vez em quando. Ela vivia no Porto e eu em Coimbra. Sempre ocupada com o trabalho no hospital, dizia-me:
— Mãe, desculpa não poder ir este fim de semana. Estou de banco outra vez.
Eu compreendia. Sempre compreendi tudo. Fui mãe sozinha durante muitos anos, depois que o António nos deixou por outra mulher. Lutei para dar aos meus filhos tudo o que podia: educação, valores, comida quente na mesa. Agora, na reforma, queria apenas retribuir com carinho e presença.
Mas parecia que já ninguém precisava de mim.
Comecei a ir ao mercado todas as manhãs, escolhendo os melhores legumes para as receitas preferidas do Miguel e da Sofia. Fazia bolos para levar à casa deles ao sábado. Tocava à campainha e via os olhares trocados entre eles — um misto de surpresa e desconforto.
— Mãe, não era preciso… — dizia Sofia, sorrindo sem mostrar os dentes.
— Eu gosto de fazer — respondia eu, tentando ignorar o tom dela.
Uma tarde, ouvi-os discutir na cozinha enquanto eu arrumava os pratos:
— A tua mãe está sempre aqui! Não temos privacidade…
— Ela só quer ajudar — respondeu Miguel, mas sem convicção.
Senti-me um peso. Comecei a perguntar-me se estava a invadir o espaço deles. Mas como podia não querer estar perto do meu filho? Ele era tudo o que me restava.
No Natal passado, preparei tudo com antecedência: bacalhau com todos, rabanadas, sonhos. Esperei ansiosa pela chegada deles. Quando finalmente chegaram, já passava das nove da noite.
— Desculpa, mãe. Sofia teve um jantar da empresa — justificou Miguel.
Sentaram-se à mesa sem apetite. Sofia mexia no telemóvel enquanto eu tentava puxar conversa:
— E então, já pensaram em filhos? — arrisquei.
Sofia olhou para mim com frieza:
— Ainda não é altura.
O silêncio caiu como uma pedra entre nós. Miguel olhou para o prato e eu percebi que estava a mais.
Depois dessa noite, comecei a sair menos de casa. Passei a cozinhar só para mim. O telefone tocava cada vez menos. Os dias tornaram-se longos e vazios. Olhava para as fotografias antigas dos meus filhos pequenos e perguntava-me onde tinha falhado.
Um dia, Clara ligou-me em lágrimas:
— Mãe… estou tão cansada… às vezes sinto que ninguém me vê.
Senti uma pontada no peito. Era assim que eu me sentia também. Conversámos durante horas sobre solidão e expectativas. Percebi que não era só eu: todos nós estávamos perdidos nas nossas rotinas e mágoas.
Miguel apareceu em minha casa numa tarde chuvosa:
— Mãe… desculpa se te tenho deixado de lado. A vida tem sido complicada…
Olhei para ele e vi o menino que criei sozinho. Abracei-o com força.
— Só queria estar perto de ti — sussurrei.
Ele chorou no meu ombro como quando era pequeno.
Desde então, tento encontrar um equilíbrio entre dar espaço e mostrar amor. Aprendi que os filhos crescem e criam as suas próprias vidas — mas o coração de mãe nunca se reforma.
Às vezes pergunto-me: será que amar demais afasta quem mais queremos perto? Ou será que é preciso aprender a amar de outra forma?
E vocês? Já sentiram que deram tudo e mesmo assim ficaram sós?