Apaixonei-me aos 60 anos: O vendedor de legumes que mudou a minha vida
— Duas cenouras e uma raiz de salsa, mas daquela bem cheirosa, como as que a minha avó colhia no quintal — pedi, tentando esconder o nervosismo na voz. O mercado de Setúbal estava cheio, como sempre às sextas-feiras, mas naquele instante tudo pareceu silenciar-se à minha volta. Ele olhou-me nos olhos, sorriu com uma ternura desarmante e respondeu:
— Só para si, Dona Teresa. Hoje trago as melhores.
Senti o rosto corar. Não era só o calor abafado do verão; era algo que não sentia há anos. Desde que o António partiu, há quase uma década, a minha vida resumia-se à rotina: cuidar da casa, visitar os netos, ir ao mercado. Nunca imaginei que aos 60 anos o coração pudesse voltar a bater assim, descompassado.
O nome dele era Manuel. Tinha mãos grossas, marcadas pelo trabalho, e olhos castanhos que pareciam ler-me a alma. Durante semanas trocámos palavras tímidas entre bancadas de legumes e sacos de plástico. Ele contava-me histórias do campo, eu falava-lhe dos meus netos e das saudades do tempo em que tudo era mais simples.
— Sabe, Teresa, às vezes penso que a vida só começa quando deixamos de ter medo do que os outros vão dizer — confidenciou-me um dia, enquanto me oferecia um ramo de coentros.
Sorri, mas por dentro sentia-me dividida. A minha filha mais velha, a Sofia, sempre foi muito protetora. Quando percebeu que eu estava diferente — mais leve, mais sorridente — começou a perguntar:
— Mãe, está tudo bem? Tem andado tão distraída…
— Está tudo ótimo, filha. Só ando cansada — menti.
Mas não era cansaço. Era esperança. Era medo também. Medo do julgamento da família, dos vizinhos, da própria Sofia. Afinal, o que diriam se soubessem que a mãe viúva andava a conversar com um feirante?
Certa manhã, ao regressar do mercado com um saco cheio de legumes frescos e o coração ainda mais cheio de sonhos, encontrei Sofia à minha espera na cozinha.
— Mãe, precisamos de conversar — disse ela com aquele tom sério que sempre me fazia sentir uma criança apanhada em falta.
Sentei-me à mesa e respirei fundo.
— A Marta contou-me que a viu no mercado… com aquele senhor dos legumes. O Manuel. Vocês são amigos?
Hesitei. Podia mentir ou podia finalmente ser honesta comigo mesma.
— Somos amigos, sim. E talvez mais do que isso.
O silêncio caiu pesado entre nós. Sofia olhou-me como se eu tivesse acabado de confessar um crime.
— Mãe… o pai só morreu há dez anos! Não acha cedo demais para essas coisas?
Ri-me, nervosa.
— Cedo? Sofia, tenho 60 anos! Passei metade da minha vida a cuidar dos outros. Não posso agora cuidar de mim?
Ela baixou os olhos. Senti-lhe a mágoa e o medo de me perder para outra pessoa. Mas também senti raiva — raiva de ter de justificar o direito de ser feliz.
Os dias seguintes foram um turbilhão. A notícia espalhou-se pela família como fogo em mato seco. O meu filho mais novo ligou-me:
— Mãe, ouvi dizer que anda metida com o Manuel do mercado… Isso é verdade?
— É verdade. E não tenho vergonha nenhuma disso.
Ele suspirou.
— Só quero que seja feliz. Mas tenha cuidado…
Cuidado com quê? Com o amor? Com a vida? Com os olhares dos vizinhos?
Continuei a ir ao mercado todas as sextas-feiras. Manuel começou a esperar-me com um sorriso ainda maior e um café quente no termo.
— Não ligue ao que dizem — sussurrou-me um dia, segurando-me na mão por baixo da banca. — A felicidade não tem idade.
Começámos a passear juntos à beira-mar ao domingo de manhã. Falávamos pouco; bastava-nos estar ali, lado a lado, ouvindo as gaivotas e o marulhar das ondas. Pela primeira vez em muitos anos senti-me viva.
Mas nem tudo era fácil. Os vizinhos começaram a cochichar quando me viam sair com ele. Uma tarde, ao regressar do café, encontrei a Dona Amélia à porta do prédio:
— Então agora anda feita menina nova? Olhe que já não tem idade para essas coisas…
Sorri-lhe com educação e subi as escadas sem responder. Mas por dentro doía. Doía perceber como as pessoas são rápidas a julgar e tão lentas a compreender.
A relação com Sofia ficou tensa durante semanas. Ela evitava falar do assunto e eu sentia-me cada vez mais sozinha na minha própria casa. Até ao dia em que adoeci.
Uma gripe forte deixou-me de cama durante dias. Manuel apareceu à porta com sopa quente e um ramo de flores do campo.
— Vim cuidar de si — disse ele, sentando-se ao meu lado.
Sofia chegou nesse momento e ficou parada à porta, surpresa ao vê-lo ali.
— O Manuel só quer ajudar — expliquei-lhe com voz fraca.
Ela olhou para mim e depois para ele. Vi-lhe nos olhos um misto de ciúme e alívio por não estar sozinha.
— Se faz bem à minha mãe… então seja bem-vindo — murmurou finalmente.
Foi como se uma nuvem pesada se dissipasse sobre nós. Aos poucos, Sofia começou a aceitar Manuel na nossa vida. Os netos adoravam-no; ele ensinava-lhes os nomes das plantas e levava-os ao campo colher morangos.
Mas nem tudo era perfeito. Havia dias em que eu própria duvidava se merecia aquela felicidade tardia. O medo de perder outra vez alguém que amava assombrava-me nas noites solitárias.
Uma tarde chuvosa, sentei-me com Manuel na varanda e desabafei:
— Tenho medo… Medo de te perder como perdi o António.
Ele pegou na minha mão com delicadeza.
— Teresa, ninguém pode prometer eternidade. Mas podemos prometer viver cada dia como se fosse único.
Chorei baixinho no ombro dele. Pela primeira vez em muito tempo deixei-me ser frágil.
O tempo passou depressa demais. O verão deu lugar ao outono e as folhas caíam no jardim como memórias antigas. Manuel pediu-me em casamento numa manhã fria de novembro, entre risos e lágrimas.
— Queres ser minha companheira até ao fim dos nossos dias?
Disse sim sem hesitar. A família reuniu-se toda para celebrar; até Dona Amélia apareceu com um sorriso envergonhado e um bolo caseiro.
Hoje olho para trás e pergunto-me: quantas vezes deixamos o medo decidir por nós? Quantas alegrias perdemos porque ouvimos mais os outros do que o nosso próprio coração?
Será que algum dia é tarde demais para amar? E vocês, já tiveram coragem de recomeçar quando todos diziam que não valia a pena?