Aos 58, o Amor Bate à Porta: Entre Dúvidas e Esperança

— Mãe, tu não vês mesmo quem é o Rogério? — A voz da Patrícia ecoou pela cozinha, carregada de uma raiva que eu não via desde a adolescência dela. O cheiro do café recém-passado misturava-se ao frio da manhã, mas nada aquecia aquele ambiente.

Fiquei parada, com a chávena na mão, tentando encontrar as palavras certas. Aos 58 anos, depois de uma vida inteira dedicada à família, à casa e ao trabalho, eu achava que merecia um pouco de paz. E amor. O amor que encontrei em Rogério, um homem simples, viúvo como eu, que me fazia rir e sonhar outra vez.

— Patrícia, filha, não é justo julgares assim — tentei argumentar, mas ela já estava de costas, mexendo no telemóvel como se procurasse ali uma resposta para o que sentia.

— Não é justo? Mãe, ele apareceu do nada! E agora já fala em casar-se contigo, em mudar-se para cá… Não achas estranho? — Ela largou o telemóvel na mesa com força. — Eu só quero proteger-te.

Senti uma pontada no peito. Proteger-me? Depois de tudo o que vivi, depois de ter criado dois filhos praticamente sozinha quando o teu pai nos deixou? Agora que finalmente alguém olha para mim com ternura, sou eu que preciso de proteção?

— Patrícia, eu sei o que faço. Não sou nenhuma menina — respondi, tentando manter a voz firme. Mas por dentro tremia. Não era só medo de perder Rogério; era medo de perder a minha filha.

O silêncio instalou-se entre nós. Lembrei-me dos tempos em que ela era pequena e corria para o meu colo sempre que tinha medo do escuro. Agora era ela quem via monstros onde eu só via esperança.

Naquela noite, Rogério chegou mais cedo. Trouxe flores do campo e um sorriso tímido. Percebeu logo o clima pesado.

— Está tudo bem? — perguntou, pousando as flores na bancada.

Patrícia nem olhou para ele. Eu forcei um sorriso.

— Está tudo ótimo, Rogério. Só… conversas de mãe e filha.

Ele assentiu, mas vi nos olhos dele a preocupação. Sentou-se ao meu lado e pegou na minha mão por baixo da mesa. O gesto simples fez-me sentir segura, mas também culpada. Estava a dividir-me entre dois amores diferentes.

Os dias seguintes foram um desfile de pequenas guerras silenciosas. Patrícia evitava Rogério sempre que podia. O meu filho mais novo, Tiago, ligava-me de vez em quando, mas mantinha-se neutro — como sempre fez na vida.

Uma tarde, enquanto arrumava fotografias antigas, encontrei uma do meu casamento com o pai dos meus filhos. Olhei para o meu rosto jovem e esperançoso naquela imagem desbotada. Tanta coisa mudou desde então. O abandono dele deixou-me desconfiada do mundo e das pessoas. Talvez por isso Patrícia tivesse medo agora.

Na semana seguinte, decidi enfrentar tudo de frente. Convidei Patrícia para almoçar fora. Escolhi um restaurante pequeno onde costumávamos ir quando ela era criança.

— Filha, preciso que me ouças sem interromper — comecei assim que nos sentámos.

Ela cruzou os braços.

— Eu amo o Rogério. Sei que não é perfeito, mas ninguém é. Ele faz-me sentir viva outra vez. Não quero perder-te por causa disso.

Ela olhou para mim com olhos marejados.

— Tenho medo de te ver sofrer outra vez, mãe…

Peguei-lhe nas mãos.

— Eu também tenho medo. Mas não posso viver sempre à sombra do passado. Preciso tentar ser feliz.

Ela baixou os olhos e ficou em silêncio durante um tempo que me pareceu eterno.

— E se ele te magoar? — sussurrou.

— Então tu vais estar aqui para me ajudar a levantar — respondi com um sorriso triste.

Nesse momento percebi que o medo dela era o reflexo do meu próprio medo. O medo de confiar outra vez, de abrir espaço para alguém novo na nossa vida tão marcada por ausências.

Os meses passaram devagar. Rogério esforçava-se por conquistar a confiança da Patrícia: ajudava em pequenas tarefas pela casa, trazia bolos caseiros quando sabia que ela vinha jantar connosco. Tiago começou a aparecer mais vezes também — talvez para ver se tudo corria bem ou só porque sentia falta da família reunida.

Numa noite chuvosa de novembro, Patrícia apareceu em casa sem avisar. Estava molhada até aos ossos e com os olhos vermelhos.

— Posso ficar aqui esta noite? — perguntou baixinho.

Levei-a para o quarto dela e sentei-me ao seu lado enquanto ela chorava baixinho. Entre soluços contou-me que tinha discutido com o namorado e sentia-se sozinha.

— Às vezes penso que nunca vou confiar em ninguém — confessou.

Abracei-a com força.

— O amor assusta mesmo, filha. Mas vale a pena arriscar.

Na manhã seguinte, Rogério preparou pequeno-almoço para todos. Patrícia olhou-o com outros olhos enquanto ele lhe servia chá quente e pão torrado.

— Obrigada — murmurou ela.

Vi ali um começo de aceitação. Pequeno, frágil, mas real.

O tempo foi suavizando as arestas entre eles. No Natal desse ano, sentámo-nos todos à mesa: eu, Rogério, Patrícia e Tiago. Pela primeira vez em muito tempo senti-me completa.

Claro que nem tudo foi perfeito depois disso. Houve discussões sobre dinheiro, sobre hábitos diferentes, sobre o futuro. Mas aprendi a valorizar cada momento de paz e cada gesto de carinho.

Hoje olho para trás e pergunto-me: quantas vezes deixamos o medo decidir por nós? Quantas vezes deixamos de viver por causa das cicatrizes antigas?

Se pudesse dar um conselho à Patrícia — ou a qualquer pessoa que tema recomeçar — diria: não deixes que o passado roube as tuas possibilidades de felicidade.

E vocês? Já tiveram de lutar pelo vosso próprio direito à felicidade? Será que algum dia conseguimos mesmo libertar-nos dos fantasmas do passado?