Aos 55 Anos, Percebi: O Meu Amor Por Ela Desapareceu

— Não me olhes assim, Leonor. Não fui eu que mudei, foste tu! — A voz da minha mulher ecoou pela cozinha, cortando o silêncio pesado da noite. O cheiro do café frio misturava-se com o aroma do pão torrado, mas nada conseguia disfarçar o amargo que se instalara entre nós. Eu, sentado à mesa, olhava para as minhas mãos, incapaz de lhe responder. Como é que chegámos aqui?

Lembro-me do dia em que conheci a Leonor. Era verão em Lisboa, 1989. Ela usava um vestido azul-claro e ria-se alto, sem vergonha de ser feliz. Eu era um rapaz tímido, acabado de entrar para a faculdade de Engenharia no Técnico. Ela estudava Letras e sonhava ser escritora. Apaixonámo-nos depressa, como quem tropeça numa pedra e cai sem se aperceber. Casámos dois anos depois, numa pequena igreja em Sintra, rodeados de amigos e família.

Durante anos, fomos felizes. Tivemos dois filhos: a Inês e o Tiago. Construímos uma vida juntos — casa, férias no Algarve, jantares de domingo com os meus pais, discussões sobre dinheiro e sobre quem ia buscar as crianças à escola. A rotina era confortável, quase anestesiante. Mas agora, aos 55 anos, sentado nesta cozinha fria, percebo que algo se perdeu pelo caminho.

— Não digas isso, Leonor — murmurei finalmente. — Eu não sei o que mudou…

Ela riu-se, mas foi um riso triste, cansado. — Não sabes? Olha para ti! Passas os dias calado, fechado no teu mundo. Nem reparas quando corto o cabelo ou quando estou triste. Achas que isto é viver?

Não soube responder-lhe. Porque, no fundo, ela tinha razão. Há meses — talvez anos — que me sentia distante dela. Comecei a chegar mais tarde a casa, a inventar reuniões que não existiam só para evitar aquele silêncio desconfortável entre nós. Os nossos filhos já tinham saído de casa; a Inês vivia no Porto com o namorado e o Tiago estava em Erasmus na Alemanha. De repente, éramos só nós dois outra vez — mas já não sabíamos ser um casal.

As noites tornaram-se longas. Eu fingia ver televisão enquanto ela lia no sofá oposto. Às vezes cruzávamos olhares e sorríamos por obrigação. Outras vezes discutíamos por coisas pequenas: a loiça por lavar, as contas por pagar, o lixo por levar. Pequenas batalhas diárias que escondiam uma guerra maior.

Lembro-me de uma noite em particular. Chovia lá fora e eu estava sentado na varanda, a fumar um cigarro escondido (Leonor detestava que eu fumasse). O telefone tocou — era a minha mãe.

— Está tudo bem contigo? — perguntou ela, com aquela voz preocupada de sempre.

— Está… está tudo bem — menti.

Mas não estava. Senti-me velho e cansado. Pensei nos meus pais: casados há mais de cinquenta anos, sempre juntos, mesmo quando discutiam. O meu pai dizia que o segredo era nunca ir dormir zangado. Mas eu e a Leonor já nem tínhamos energia para discutir a sério.

No trabalho também não era melhor. Os colegas mais novos falavam de viagens e projetos ambiciosos; eu sentia-me deslocado, ultrapassado pelo tempo. Às vezes dava por mim a pensar como seria recomeçar do zero: mudar de cidade, de emprego… de vida.

Foi numa dessas noites solitárias que percebi: já não amava a Leonor. Não era ódio nem raiva — era indiferença. Uma ausência de sentimentos tão grande que me assustou.

Tentei ignorar esse pensamento durante semanas. Mas ele voltava sempre, como uma sombra atrás de mim.

— Achas que ainda faz sentido continuarmos juntos? — perguntei-lhe um dia, sem conseguir encará-la nos olhos.

Ela ficou em silêncio durante tanto tempo que pensei que não ia responder.

— Não sei — disse finalmente. — Talvez não.

Chorei nessa noite. Chorei como há muito tempo não chorava. Senti-me egoísta por querer partir; senti-me cobarde por ter ficado tanto tempo calado.

Os dias seguintes foram um turbilhão de emoções. Falámos com os nossos filhos pelo Zoom; eles ficaram em choque, tentaram convencer-nos a dar mais uma oportunidade ao casamento.

— Vocês são o nosso exemplo! — disse a Inês, com lágrimas nos olhos.

Mas eu sabia que já não havia volta a dar.

Começámos a dividir as coisas: livros, discos antigos, fotografias dos miúdos pequenos. Cada objeto era uma memória partilhada — uma viagem ao passado que doía mais do que confortava.

A Leonor mudou-se para casa da irmã em Cascais; eu fiquei no apartamento em Lisboa. Os primeiros dias sozinho foram estranhos: silêncio absoluto, ausência total de rotinas partilhadas. Senti falta dela? Sim… mas não do amor antigo; senti falta da companhia habitual, da previsibilidade dos nossos dias.

Os amigos comuns afastaram-se ou tomaram partidos. Alguns diziam-me que era uma crise passageira; outros criticavam-me por desistir tão tarde.

No trabalho, ninguém sabia ao certo o que se passava comigo — mas notavam que eu estava diferente.

Houve noites em que me arrependi? Sim… mas só por breves instantes. Depois lembrava-me das discussões vazias, dos silêncios pesados e da sensação de estar a viver uma vida emprestada.

A Leonor seguiu em frente mais depressa do que eu esperava: começou a frequentar aulas de escrita criativa e fez novas amigas. A Inês visitou-me algumas vezes; o Tiago ligava menos do que devia.

Fui aprendendo a viver sozinho: aprendi a cozinhar para um só, a dormir numa cama demasiado grande e fria, a preencher os meus dias com pequenas rotinas novas — caminhadas matinais pelo Jardim da Estrela, idas ao cinema sozinho ao domingo à tarde.

Às vezes dou por mim a pensar se poderia ter feito algo diferente: será que devia ter lutado mais? Será que fui egoísta ao escolher o meu próprio bem-estar em vez da estabilidade familiar?

Hoje olho para trás com tristeza mas também com alívio. Percebo que o amor pode morrer devagarinho — não com gritos ou traições, mas com silêncios e ausências acumuladas ao longo dos anos.

E tu? Já sentiste o amor desaparecer sem aviso? Será possível recomeçar aos 55 anos ou estamos condenados a viver das memórias do passado?