Aos 53 Anos, Entre o Medo e a Coragem: O Meu Recomeço
— Mãe, não podes estar a falar a sério! — gritou a Inês, a voz embargada entre a raiva e o desespero. O Ricardo, mais contido, olhava-me com aqueles olhos escuros do pai, cheios de julgamento e mágoa. Senti o coração apertar-se no peito, como se cada batida fosse um pedido de desculpa por querer viver outra vez.
Tinha 53 anos quando me reformei do mundo frenético da organização de eventos. Durante trinta anos, fui o pilar de festas, casamentos e congressos, sempre a correr de um lado para o outro, sempre a sorrir para os outros. Quando o António morreu, há três anos, o silêncio da casa tornou-se ensurdecedor. Os dias arrastavam-se, e eu tentava preencher o vazio com voluntariado e caminhadas solitárias pelo Jardim da Estrela. Mas nada preenchia aquele buraco.
Foi numa dessas manhãs cinzentas que conheci o Miguel. Estava sentado num banco do jardim, a ler um livro do Saramago. Trocámos um sorriso tímido e, sem saber como, começámos a conversar sobre tudo e sobre nada. Descobri que também era viúvo, reformado da CP, com uma filha emigrada em França. A conversa fluiu como se nos conhecêssemos há anos. No final, convidou-me para um café na esplanada. Aceitei, sentindo-me estranhamente leve.
Durante meses, encontrámo-nos quase todos os dias. Falávamos dos nossos mortos — ele da Maria do Carmo, eu do António — mas também dos vivos: dos filhos, dos netos, dos sonhos adiados. Aos poucos, fui-me apaixonando por aquele homem de sorriso fácil e mãos calejadas. Pela primeira vez em anos, voltei a sentir-me viva.
Quando contei à Inês e ao Ricardo que estava a pensar mudar-me para casa do Miguel em Setúbal, explodiu o caos. A Inês acusou-me de trair a memória do pai. O Ricardo disse que eu estava a ser ingénua, que devia pensar nos netos e não em mim. Senti-me esmagada pela culpa e pela dúvida.
— Achas justo deixares-nos assim? — perguntou o Ricardo numa noite chuvosa, sentado à mesa da cozinha onde tantas vezes jantámos em família.
— Não vos estou a deixar — respondi baixinho. — Só quero tentar ser feliz outra vez.
A Inês chorava baixinho no sofá. Sempre foi mais sensível, mais ligada ao pai. Lembrei-me de quando era pequena e me pedia para não ir trabalhar ao fim de semana. Agora era ela quem me pedia para não partir.
Os dias seguintes foram um turbilhão de emoções. O Miguel tentava animar-me com mensagens carinhosas: “A vida é curta demais para vivermos só para agradar aos outros.” Mas eu sentia-me dividida entre o desejo de recomeçar e o medo de magoar os meus filhos.
Uma tarde, fui buscar os meus netos à escola. A Matilde correu para mim com os braços abertos:
— Avó! Vais brincar connosco hoje?
Olhei para ela e senti uma pontada no peito. E se perdesse estes momentos? E se os meus filhos se afastassem de mim para sempre?
Nessa noite, liguei ao Miguel.
— Não sei se consigo — confessei-lhe, a voz trémula.
— Não tens de escolher entre mim e eles — respondeu ele com uma calma que me desarmou. — Mas tens de escolher entre viver para ti ou viver para os outros.
As palavras dele ecoaram durante dias na minha cabeça. Lembrei-me de todas as vezes em que pus os outros à frente dos meus sonhos: quando recusei aquela viagem à Grécia porque o António não queria voar; quando aceitei trabalhar horas extra para pagar as explicações da Inês; quando adiei tudo o que era só meu.
O conflito familiar intensificou-se quando anunciei que ia passar um fim de semana em Setúbal com o Miguel. A Inês deixou de me falar durante dias. O Ricardo enviou-me uma mensagem fria: “Faz o que quiseres, mas não contes comigo para te apoiar nisto.” Senti-me sozinha como nunca.
No entanto, em Setúbal, ao lado do Miguel, redescobri partes de mim que julgava perdidas: ri alto num restaurante à beira-mar; dancei na sala ao som de Rui Veloso; adormeci abraçada sem medo do amanhã. Pela primeira vez em muito tempo, senti paz.
Quando voltei a Lisboa, encontrei a Inês à minha espera à porta de casa.
— Mãe… — começou ela, hesitante — tenho medo de te perder.
Abracei-a com força.
— Nunca me vais perder. Só preciso que aceites que também tenho direito a ser feliz.
Ela chorou no meu ombro durante minutos intermináveis. Depois afastou-se e olhou-me nos olhos:
— Prometes que nunca vais deixar de ser a nossa mãe?
Sorri-lhe entre lágrimas:
— Isso nunca vai mudar.
O Ricardo demorou mais tempo a aceitar. Só meses depois, quando nasceu o meu segundo neto, ele me procurou.
— Mãe… desculpa — murmurou ele no corredor da maternidade. — Acho que estava com medo de te ver sofrer outra vez.
Abracei-o com ternura.
— Não tenhas medo por mim. Deixa-me viver enquanto posso.
Hoje vivo entre Lisboa e Setúbal. Os meus filhos ainda têm dúvidas, mas já não me olham como uma traidora. Perceberam que amar outra vez não apaga o passado — só lhe acrescenta cor.
Às vezes pergunto-me: quantas mulheres da minha idade terão coragem de recomeçar? Quantas se deixam paralisar pelo medo ou pela culpa? Será que algum dia aprendemos mesmo a viver para nós?