Aos 50 Anos, Deixo a Minha Mulher — Não Por Uma Mais Nova, Mas Por Um Amor Que Nunca Morreu

— Não acredito que estás mesmo a fazer isto, Miguel! — gritou a Teresa, com os olhos vermelhos de raiva e lágrimas. O eco da sua voz ainda ressoava pela casa, misturando-se com o cheiro do café frio e do pão torrado que ninguém tocou naquela manhã.

Eu fiquei parado, com a mala na mão, sentindo o peso de cada palavra dela como se fossem pedras a cair-me no peito. O relógio da parede marcava 7h12, mas para mim o tempo parecia suspenso. Olhei para os meus filhos, o João e a Mariana, sentados à mesa, imóveis, como se tivessem sido apanhados por uma tempestade inesperada. O João, com 22 anos, olhava-me com uma mistura de raiva e incredulidade. A Mariana, mais nova, tinha os olhos marejados e mordia o lábio inferior para não chorar.

— Pai… — sussurrou ela, quase inaudível. — Porquê agora?

Respirei fundo. Tentei encontrar as palavras certas, mas elas fugiam-me como areia entre os dedos. Como explicar que, aos cinquenta anos, depois de uma vida inteira dedicada à família, ao trabalho no escritório de contabilidade em Setúbal, às rotinas de domingo no parque da cidade, eu sentia um vazio que não conseguia mais ignorar?

A Teresa aproximou-se de mim, os punhos cerrados. — É por causa dela, não é? Daquela mulher! — cuspiu as palavras como se fossem veneno.

O nome dela não foi pronunciado, mas ambos sabíamos de quem falava: Sofia. O meu primeiro amor, a rapariga dos olhos verdes que conheci no liceu D. João II. Trinta anos passaram desde aquele verão em que nos beijámos pela primeira vez à sombra dos plátanos do jardim municipal. Trinta anos desde que ela partiu para o Porto e eu fiquei em Setúbal, convencido de que a vida me daria outras oportunidades.

Casei com a Teresa pouco depois. Tivemos dois filhos lindos. Construímos uma casa com vista para o Sado. Mas nunca consegui esquecer a Sofia. Durante anos trocámos cartas, depois e-mails, depois mensagens esporádicas nas redes sociais. Sempre com aquela distância segura de quem sabe que não pode ter mais.

Até ao mês passado.

Foi num reencontro casual — ou talvez não tão casual assim — numa conferência em Lisboa. Ela estava lá, igual ao que me lembrava: sorriso tímido, cabelo castanho preso num rabo-de-cavalo desalinhado. Falámos durante horas. Rimos das mesmas piadas antigas. E quando me despedi dela na estação do Oriente, percebi que o sentimento nunca tinha morrido.

Desde então, tudo mudou dentro de mim. As noites tornaram-se insuportáveis ao lado da Teresa. O cheiro dela já não me acalmava; os seus abraços pareciam prisões. Comecei a chegar mais tarde a casa, a inventar reuniões que não existiam. Até que ontem à noite confessei tudo.

— Não é só por ela — tentei explicar agora à minha família. — É por mim também. Sinto-me morto por dentro há anos e nunca tive coragem de admitir.

O João levantou-se abruptamente, atirando a cadeira contra o chão.

— És um egoísta! — gritou-me na cara. — A mãe sempre esteve aqui para ti! E nós? Não pensaste em nós?

Senti as lágrimas a quererem romper-me dos olhos, mas forcei-me a manter a compostura. Não podia fraquejar agora.

— Pensei em vocês todos os dias — respondi baixinho. — Mas também tenho direito a ser feliz.

A Teresa riu-se amargamente.

— Felicidade? Aos cinquenta anos? Achas mesmo que vais encontrar isso com uma mulher que não vês há décadas? Vais acabar sozinho, Miguel! Vais arrepender-te!

Aquelas palavras ficaram a ecoar na minha cabeça enquanto saía de casa pela última vez. O céu estava cinzento e ameaçava chover. Senti o frio do vento no rosto e lembrei-me dos dias em que levava os miúdos ao parque e corríamos juntos sob a chuva. Agora tudo aquilo parecia pertencer a outra vida.

No carro, liguei o rádio para abafar os meus pensamentos. Mas nada conseguia calar o turbilhão dentro de mim: culpa, medo, excitação e uma estranha sensação de liberdade.

Cheguei ao pequeno apartamento alugado perto do centro histórico de Setúbal. As paredes nuas e o cheiro a tinta fresca faziam-me sentir ainda mais deslocado. Sentei-me no sofá improvisado com almofadas velhas e tentei ligar à Sofia.

— Olá? — atendeu ela com voz hesitante.

— Sofia… Saí de casa — disse-lhe sem rodeios.

Houve um silêncio do outro lado da linha.

— Tens a certeza do que estás a fazer? — perguntou ela finalmente.

— Não sei — confessei. — Mas precisava disto para respirar outra vez.

Ela suspirou.

— Miguel… Eu também tenho medo. Não somos os mesmos miúdos de há trinta anos.

— Eu sei — respondi. — Mas quero tentar. Preciso tentar.

Marcámos um encontro para o dia seguinte. Passei a noite em claro, revendo mentalmente cada momento da minha vida: o nascimento dos meus filhos, as festas de aniversário no quintal, as discussões sobre dinheiro e as noites silenciosas em frente à televisão.

No dia seguinte, encontrei-me com a Sofia num café discreto junto ao rio. Ela estava nervosa; eu também. Falámos durante horas sobre tudo o que tínhamos vivido separados: os casamentos falhados dela, as minhas rotinas sufocantes, as saudades nunca confessadas.

— Achas mesmo que conseguimos recomeçar? — perguntou ela com lágrimas nos olhos.

— Não sei — admiti outra vez. — Mas se não tentarmos agora… quando?

Os dias seguintes foram um turbilhão de emoções contraditórias: alegria por estar finalmente com ela; culpa por ter magoado tanto a Teresa e os meus filhos; medo do futuro; esperança num recomeço tardio.

A Mariana mandou-me uma mensagem curta: “Preciso de tempo.” O João bloqueou-me nas redes sociais e recusa-se a falar comigo. A Teresa pediu o divórcio e disse-me que nunca me vai perdoar.

Às vezes pergunto-me se fiz bem. Se fui egoísta ou apenas humano. Se é possível reconstruir uma vida sobre os escombros da anterior sem magoar quem mais amamos.

Hoje olho-me ao espelho e vejo um homem envelhecido pelo tempo e pelas escolhas difíceis. Mas também vejo alguém que finalmente teve coragem de ouvir o próprio coração.

Será que algum dia os meus filhos vão compreender? Será possível encontrar redenção depois de tanto sofrimento? E vocês… já sentiram este vazio? Ousariam arriscar tudo por um amor antigo?