Anos Longe Por Eles: Comprei Casa Aos Meus Filhos, Mas Não Me Deixaram Nem Dormir Lá

— Não podes ficar cá esta noite, pai. — A voz da minha filha, Mariana, ecoou pelo corredor, fria como o mármore da entrada. Fiquei parado, mala na mão, o cheiro do aeroporto ainda colado à roupa. Olhei para ela, para o meu neto que espreitava atrás da porta, e senti o peito apertar-se como se alguém me tivesse roubado o ar.

Vinte e cinco anos. Vinte e cinco anos a acordar antes do sol nascer, a trabalhar em obras em Lyon, a enviar cada cêntimo para Lisboa. Lembro-me do dia em que comprei este apartamento para eles — o sorriso da minha mulher, Teresa, a promessa de que um dia voltaríamos todos a viver juntos, felizes. Mas Teresa morreu antes de eu regressar. E agora, Mariana olha para mim como se eu fosse um estranho.

— Mas Mariana… — tentei argumentar, a voz embargada — é só por esta noite. O meu voo chegou tarde, não consegui arranjar hotel…

Ela desviou o olhar. — O Rui não gosta de surpresas. E amanhã temos compromissos cedo. Desculpa, pai.

O Rui. O genro perfeito, sempre de fato e gravata, sempre com pressa. Nunca gostou de mim. Talvez por eu ser bruto, por ter as mãos calejadas e o sotaque carregado de quem passou metade da vida fora. Talvez por inveja — afinal, fui eu que lhes dei esta casa.

Saí para a rua sem saber para onde ir. Chovia miudinho, aquela chuva teimosa de Lisboa que parece nunca acabar. Sentei-me num banco de jardim e liguei ao meu filho mais novo, Miguel.

— Pai? Agora não posso falar muito… — A voz dele era abafada, sons de copos ao fundo.

— Miguel… Preciso de um sítio para dormir esta noite. A tua irmã não me deixou ficar lá.

Silêncio. Depois um suspiro.

— Olha, estou com amigos… Não dava jeito agora. Amanhã falamos?

Desligou antes que eu pudesse responder. Fiquei ali sentado, a olhar para as luzes dos carros a desfocar-se na chuva. Pensei em Teresa, no sorriso dela quando recebia as minhas cartas de França, nas promessas que fizemos um ao outro.

A primeira noite em Lisboa passei-a num hostel barato em Arroios, rodeado de mochileiros estrangeiros que riam alto nos corredores. Não dormi quase nada. No pequeno-almoço, uma rapariga alemã perguntou-me porque estava tão triste. Sorri-lhe sem vontade e disse apenas: “A vida às vezes é ingrata”.

Na semana seguinte tentei aproximar-me dos meus filhos. Convidei-os para jantar fora — Mariana disse que estava ocupada com o trabalho; Miguel nem respondeu à mensagem. Fui visitar o apartamento que lhes comprei: a fachada estava pintada de fresco, mas as janelas estavam fechadas como os corações deles.

Um dia cruzei-me com a vizinha do lado, Dona Rosa.

— Ó senhor António! Já voltou de França? Que bom vê-lo! Os seus filhos devem estar tão felizes…

Sorri-lhe com amargura.

— Nem imagina, Dona Rosa… Nem imagina.

Ela olhou-me nos olhos e viu mais do que eu queria mostrar.

— Sabe, às vezes os filhos esquecem-se do que os pais fizeram por eles. Mas não desista deles.

As palavras dela ficaram comigo durante dias. Tentei lembrar-me onde foi que tudo se perdeu. Terá sido quando comecei a faltar aos aniversários? Quando deixei de saber os nomes dos amigos deles? Ou terá sido simplesmente o tempo — esse ladrão silencioso — que levou tudo?

Uma tarde decidi ir ao café onde costumava jogar dominó com os amigos antes de emigrar. O senhor Manuel ainda lá estava, mais velho mas com o mesmo sorriso maroto.

— António! Então homem? Já voltaste à terra?

Contei-lhe tudo entre goles de bica amarga.

— Sabes, Manuel… Dei-lhes tudo: casa, estudos, conforto… E agora nem um sofá me oferecem para dormir.

Ele abanou a cabeça.

— O dinheiro compra muita coisa, António. Mas não compra tempo nem carinho. Eles cresceram sem ti.

Fiquei a pensar nisso durante dias. Será que fui egoísta ao querer dar-lhes tudo? Ou será que eles é que se esqueceram do valor do sacrifício?

Na semana seguinte recebi uma chamada inesperada da Mariana.

— Pai… Precisas de alguma coisa?

O tom era neutro, quase profissional.

— Só queria ver-vos. Só queria sentir que ainda faço parte da vossa vida.

Ela suspirou.

— As coisas mudaram muito enquanto estiveste fora. O Rui acha estranho teres voltado assim de repente… E eu… Eu já não sei como falar contigo.

Fiquei calado. Do outro lado ouvi o neto a rir-se com um desenho animado qualquer.

— Mariana… Eu só queria jantar convosco uma vez por semana. Só isso.

— Vou ver com o Rui e depois digo-te alguma coisa.

Nunca mais respondeu.

Os dias passaram lentos e iguais. Arranjei um part-time numa mercearia do bairro para ocupar o tempo e pagar o quarto onde fiquei a viver. Às vezes via os meus filhos na rua — Mariana apressada a levar o neto à escola; Miguel sempre ao telemóvel — mas nunca me viram ou fingiram não ver.

No Natal comprei presentes para todos: brinquedos para o neto, um cachecol bonito para Mariana, uma garrafa de vinho caro para Miguel. Deixei tudo à porta do apartamento deles com um bilhete: “Com amor do vosso pai”. Ninguém me ligou a agradecer.

Na véspera de Ano Novo sentei-me sozinho no quarto alugado e ouvi os foguetes ao longe. Lembrei-me das festas antigas com Teresa e os miúdos pequenos a correr pela casa. Chorei como há muitos anos não chorava.

Meses depois recebi uma carta do tribunal: Miguel queria vender o apartamento para dividir o dinheiro entre ele e a irmã. Fui chamado para assinar papéis como se fosse um estranho qualquer.

No cartório olhei para eles — Mariana evitava o meu olhar; Miguel parecia impaciente — e perguntei:

— É isto? Depois de tudo… é só isto?

Miguel encolheu os ombros.

— Cada um segue a sua vida, pai.

Assinei os papéis com mãos trémulas. Saí dali mais leve no corpo mas mais pesado na alma.

Hoje passo os dias sentado no jardim da Graça a ver as crianças brincarem com os avós. Às vezes pergunto-me se teria sido melhor nunca ter saído de Portugal; se teria sido melhor ser pobre mas estar presente; se algum dia os meus filhos vão perceber tudo o que fiz por eles.

E vocês? Acham que valeu a pena sacrificar tudo pelos meus filhos? Ou será que há coisas que nunca se recuperam — nem com todo o dinheiro do mundo?