Anos de Sacrifício: Comprei Casas para os Meus Três Filhos, Mas Não Me Querem em Nenhuma

— Mãe, não podes ficar aqui. O quarto das miúdas já está apertado e o Paulo trabalha por turnos, precisa de descanso. — A voz da minha filha mais velha, Andreia, soou seca, quase impaciente. Senti o chão fugir-me dos pés. Tinha acabado de chegar de França, com as malas ainda por desfazer, e já me diziam que não havia espaço para mim.

Olhei para ela, tentando decifrar se era mesmo verdade ou apenas uma desculpa. O meu coração batia descompassado. Tantos anos a sonhar com este regresso, a imaginar os almoços de domingo em família, os netos a correrem pelo quintal… E agora isto.

— Mas filha… — tentei argumentar, a voz embargada — eu só preciso de um cantinho. Nem que seja o sofá da sala por uns dias. Não quero incomodar.

Ela desviou o olhar. — Mãe, não é só isso. O Paulo acha que devias ir para casa do Rui. Ele tem mais espaço.

O Rui, o meu filho do meio, sempre foi o mais distante. Liguei-lhe nesse mesmo dia. Atendeu ao fim de vários toques.

— Mãe? Agora não dá muito jeito… A Marta está grávida e anda muito sensível. Não queremos stress cá em casa.

Fiquei sem palavras. Senti-me um fardo. Eu, que tinha passado vinte e cinco anos a limpar casas em Lyon, a fazer horas extra para lhes comprar casa a cada um deles — casas que agora eram deles, mas onde eu não tinha lugar.

Lembro-me do primeiro inverno em França. O frio entrava pelos ossos e o cheiro a lixívia nunca me saía das mãos. Trabalhava de madrugada até à noite, sempre a pensar nos meus meninos pequenos deixados com a minha mãe em Viseu. Mandava-lhes dinheiro todos os meses, comprava-lhes roupa bonita e brinquedos caros para compensar a ausência.

Quando finalmente consegui comprar a primeira casa — para a Andreia — chorei de alegria ao telefone. Ela tinha 18 anos e estava prestes a casar-se. “Mãe, és a melhor do mundo”, disse-me ela nessa altura. Como é que se passa do melhor do mundo para um incómodo?

A terceira tentativa foi com o mais novo, o Tiago. Ele sempre foi o meu menino querido, mas agora vivia com a namorada numa casa pequena em Aveiro.

— Mãe… eu e a Sofia ainda estamos a começar. Não temos espaço nem condições para receber ninguém agora.

Sentei-me num banco do jardim público com as malas ao lado. O vento frio de março cortava-me a pele e as lágrimas ardiam-me nos olhos. Liguei à minha irmã Rosa.

— Fica cá em casa uns dias, mana — disse ela sem hesitar. — Mas sabes como é o Joaquim… ele nunca gostou muito de ter gente cá.

Fiquei lá duas semanas. O Joaquim mal me falava à mesa e fazia questão de deixar claro que estava ali de favor. Sentia-me cada vez mais invisível.

Uma noite, não consegui dormir. Levantei-me e fui até à varanda fumar um cigarro — um hábito antigo que nunca consegui largar completamente. Olhei para as luzes da cidade e pensei: “Para isto trabalhei eu tanto? Para ser estrangeira na minha própria família?”

No domingo seguinte, decidi enfrentar os meus filhos todos juntos. Convidei-os para almoçar na casa da Rosa.

— Filhos, preciso de falar convosco — comecei, tentando manter a voz firme apesar das mãos trémulas. — Passei metade da minha vida longe de vocês para vos dar tudo o que tenho. Agora só peço um pouco de companhia e um teto onde possa envelhecer com dignidade.

Andreia olhou para o telemóvel. Rui suspirou alto. Tiago nem levantou os olhos do prato.

— Mãe… tu é que escolheste ir trabalhar para fora — disse Rui finalmente. — Nós habituámo-nos à nossa vida assim.

— Mas vocês não percebem? Eu fiz tudo por vocês! Dei-vos casas, dei-vos oportunidades! E agora? Onde é que eu fico?

Andreia encolheu os ombros. — Podes sempre arranjar um apartamento pequeno para ti… Com o dinheiro que juntaste lá fora.

Senti uma raiva surda crescer dentro de mim. O dinheiro… sempre o dinheiro! Era só isso que viam em mim?

— Sabem o que mais? — levantei-me devagar, sentindo as pernas bambas — Vou arranjar um sítio só meu. Mas não se esqueçam: um dia vão perceber o que custa dar tudo e receber nada.

Saí dali sem olhar para trás. Passei semanas à procura de um T1 barato nos arredores da cidade. Os vizinhos eram simpáticos mas distantes; os dias passavam lentos entre idas ao supermercado e chamadas vazias dos filhos — sempre apressadas, sempre com desculpas.

No Natal desse ano, ninguém apareceu. Fiquei sozinha com um bacalhau pequeno e uma garrafa de vinho barato. Chorei como há muito não chorava.

Hoje escrevo esta história sentada na varanda do meu pequeno apartamento alugado. Vejo as crianças dos outros brincarem no parque e pergunto-me onde errei como mãe. Será que dei demais? Será que devia ter ficado cá, mesmo sem condições?

Às vezes penso em voltar para França, onde pelo menos tinha amigas e sentia que pertencia a algum lado. Mas depois lembro-me: esta é a minha terra, mesmo que já não tenha lugar nela.

O que é que faz uma mãe quando já não tem casa nos corações dos filhos? Será que algum dia vão perceber tudo o que sacrifiquei por eles? Gostava de ouvir as vossas histórias… Será que sou só eu?