Anos de Amizade, Um Momento de Traição: Uma História Lisboeta
— Não posso acreditar, Marta! Tu sabias disto e não me disseste nada? — gritei, a voz a tremer entre a raiva e a mágoa, enquanto olhava para a minha vizinha do lado, aquela que durante anos considerei uma irmã.
Ela desviou o olhar, encolhendo os ombros. O cheiro do café acabado de fazer misturava-se com o frio da manhã que entrava pela janela aberta da cozinha. Oiço ao longe o som dos elétricos na Avenida Almirante Reis, mas ali, naquele instante, só existia o silêncio pesado entre nós.
Tudo começou há mais de dez anos, quando me mudei para este prédio antigo em Arroios. Lisboa era outra nessa altura — menos turistas, menos pressa. Eu vinha de uma separação difícil e procurava recomeçar. Marta foi a primeira a bater-me à porta com um bolo de laranja e um sorriso aberto. “Aqui ninguém fica sozinho”, disse-me logo no primeiro dia.
E assim foi. Os jantares improvisados, as conversas até tarde no pátio interior, as partilhas de roupa quando uma de nós precisava de algo especial para uma entrevista ou um encontro. O António, marido dela, ajudou-me a montar móveis quando comprei a estante nova do IKEA. A filha deles, a pequena Leonor, chamava-me “tia Rita”.
Aos poucos, os outros vizinhos também se foram juntando ao nosso círculo: o Sr. Joaquim do terceiro esquerdo, sempre pronto para contar histórias da sua juventude no Alentejo; a D. Rosa, viúva há décadas mas com um coração enorme; o casal jovem do rés-do-chão, sempre com música alta mas boa disposição. Formámos uma espécie de família improvisada.
Mas tudo mudou quando o prédio foi vendido a um fundo imobiliário estrangeiro. Começaram as obras, os avisos de despejo, as cartas registadas. O medo instalou-se em todos nós. Eu, com o meu salário de professora precária, sabia que não conseguiria pagar uma renda ao preço do mercado atual. Falei com Marta muitas vezes sobre isso.
— Não te preocupes, Rita. Vamos todos lutar juntos. Ninguém vai sair daqui — prometeu-me ela numa dessas noites em que chorámos abraçadas na cozinha.
Mas as semanas passaram e comecei a notar mudanças. Marta já não me convidava para jantar. O António evitava cruzar-se comigo nas escadas. A Leonor deixou de me bater à porta para pedir açúcar ou mostrar os desenhos da escola.
Até que um dia ouvi por acaso uma conversa no pátio. Marta falava ao telefone, voz baixa mas clara:
— Sim, aceitamos as condições. Só queremos garantir que ficamos com o apartamento… Não vamos dizer nada aos outros por enquanto.
Senti o chão fugir-me dos pés. Eles tinham feito um acordo com os novos donos para ficarem no prédio em troca de não se juntarem à luta dos restantes inquilinos. Traíram-nos para salvar a própria pele.
Confrontei-a nesse mesmo dia. Foi aí que tudo desabou.
— Rita, eu tenho uma filha! Não posso arriscar ficar na rua — justificou-se ela, olhos marejados de lágrimas.
— E eu? E o Sr. Joaquim? E a D. Rosa? Somos todos descartáveis?
Ela não respondeu. O silêncio dela foi mais doloroso do que qualquer palavra.
A notícia espalhou-se pelo prédio como fogo em mato seco. O ambiente tornou-se insuportável. Os outros vizinhos sentiram-se igualmente traídos. O Sr. Joaquim deixou de cumprimentar Marta no elevador; a D. Rosa passou a fechar a porta à chave assim que ouvia passos no corredor.
Os despejos começaram pouco depois. Vi o Sr. Joaquim sair com duas malas e um saco de plástico cheio de fotografias antigas. A D. Rosa foi viver para casa do filho em Setúbal, contra vontade própria. Eu tentei resistir até ao fim, mas acabei por ceder à pressão e aceitar uma indemnização miserável.
No dia em que fechei a porta do meu apartamento pela última vez, olhei para o corredor vazio e senti uma dor funda no peito. Não era só a casa que estava a perder — era toda uma vida partilhada, uma rede de afetos construída ao longo dos anos.
Mudei-me para um quarto alugado em Benfica, longe de tudo o que conhecia. As noites tornaram-se longas e silenciosas. Sinto falta das risadas no pátio, dos cheiros da comida da Marta, das histórias do Sr. Joaquim.
Às vezes pergunto-me se teria feito o mesmo no lugar dela. Será que a sobrevivência justifica tudo? Ou será que há laços que deviam ser mais fortes do que o medo?
Hoje vejo Marta na rua de vez em quando. Ela baixa os olhos, eu também. Entre nós ficou um abismo impossível de atravessar.
E vocês? Já sentiram esta dor de perder alguém não por morte, mas por escolha? Até onde iriam para proteger a vossa família? O que vale mais: a amizade ou a sobrevivência?