Amor no Outono da Vida: A Última Aposta
— O senhor enlouqueceu, pai? — gritou a minha filha mais velha, Inês, com os olhos marejados de lágrimas e raiva. — Aos setenta e cinco anos, vai casar-se com uma mulher vinte anos mais nova? E espera que aceitemos isso como se fosse normal?
Senti o sangue ferver-me nas veias, mas mantive a voz baixa, quase um sussurro, como quem tenta acalmar um animal ferido.
— Inês, eu só quero ser feliz. Não é isso que todos procuramos? Depois de perder a tua mãe, pensei que nunca mais voltaria a sentir algo assim…
Ela interrompeu-me com um gesto brusco.
— Não invoques a mãe! Ela nunca aprovaria isto. E sabes disso.
O silêncio caiu pesado na sala de estar. O relógio antigo da família marcava cada segundo como se fosse uma sentença. O meu filho mais novo, Miguel, olhava para o chão, incapaz de me encarar. A minha neta, Leonor, brincava distraída com o gato ao canto, alheia à tempestade que se abatia sobre nós.
Recordo-me de ter passado noites inteiras a olhar para o teto do meu quarto, sentindo o vazio ao meu lado na cama. A casa parecia maior desde que a Maria partira. Os dias arrastavam-se numa rotina sem cor: café da manhã solitário, passeios pelo jardim, as visitas semanais dos filhos — sempre apressadas, sempre com um olho no relógio. Até que conheci a Teresa.
Teresa era enfermeira reformada, vizinha do terceiro andar. Trocávamos cumprimentos no elevador, até que um dia ela me ofereceu um bolo de laranja ainda quente. Conversámos sobre livros, sobre fados antigos, sobre as saudades do mar. Senti-me vivo outra vez. E foi assim que tudo começou.
Quando contei aos meus filhos que queria casar-me com Teresa, esperava alguma surpresa — talvez até um sorriso cúmplice. Mas nunca imaginei a tempestade que se seguiria. Inês acusou-me de traição à memória da mãe. Miguel disse que eu estava a ser manipulado. Até o meu irmão mais velho, António, ligou-me para dizer que estava a envergonhar a família.
— O que é que ela quer de ti? — perguntou António numa noite chuvosa ao telefone. — O dinheiro? A casa?
Senti-me humilhado. Teresa nunca me pediu nada além de companhia e respeito. Mas as dúvidas começaram a corroer-me por dentro. Estaria eu a ser ingénuo? Ou seria apenas medo de envelhecer sozinho?
Os dias seguintes foram um inferno. Os meus filhos deixaram de me visitar. As chamadas tornaram-se raras e frias. No prédio, os vizinhos cochichavam quando passávamos juntos no elevador. Teresa tentava animar-me com chá e conversas longas à janela, mas eu sentia o peso do julgamento em cada olhar.
Na véspera do casamento civil, sentei-me à mesa da cozinha com Teresa.
— Achas que estou a fazer mal? — perguntei-lhe, com a voz embargada.
Ela pousou a mão sobre a minha.
— Amar nunca é errado, Manuel. Mas às vezes o mundo faz-nos pagar caro por isso.
No dia do casamento, apenas dois amigos compareceram. O salão da junta de freguesia parecia ainda mais vazio sem os meus filhos. Teresa sorriu-me com ternura enquanto trocávamos alianças simples de prata.
As semanas seguintes foram um misto de felicidade e dor. Teresa enchia a casa de vida: flores frescas na mesa, música no rádio antigo, risos ao pequeno-almoço. Mas cada vez que o telefone tocava e não era nenhum dos meus filhos, sentia uma pontada no peito.
Certa tarde, encontrei Miguel à porta do prédio. Trazia uma expressão dura.
— Vim buscar umas coisas da mãe — disse ele sem me olhar nos olhos.
— Miguel… — tentei aproximar-me.
Ele afastou-se.
— Não quero falar sobre isso. Para mim, tu morreste naquele dia.
Fiquei parado no corredor, sentindo o chão fugir-me dos pés. Teresa apareceu à porta e abraçou-me em silêncio.
O tempo foi passando e as feridas não saravam. No Natal seguinte, preparei uma ceia para todos — filhos e netos incluídos — mas ninguém apareceu. Teresa tentou disfarçar a tristeza com piadas e vinho quente, mas vi-lhe as lágrimas nos olhos quando pensava que eu não reparava.
Comecei a duvidar de mim mesmo: teria sido egoísta? Teria trocado o amor dos meus filhos por uma felicidade tardia? Ou seria apenas medo de morrer sozinho?
Uma noite, depois de um jantar silencioso, Teresa segurou-me as mãos e disse:
— Não podemos viver presos ao passado ou ao julgamento dos outros. Se eles te amam verdadeiramente, um dia vão perceber.
Mas os meses passaram e nada mudou. Os vizinhos continuavam a cochichar; os meus filhos mantinham-se distantes; até os amigos antigos começaram a evitar convites para café.
Certo dia recebi uma carta da Inês:
“Pai,
Não consigo perdoar-te por teres escolhido outra mulher em vez da nossa família. Talvez um dia entendas o mal que nos fizeste.”
Li aquelas palavras vezes sem conta até as letras se desfazerem em lágrimas no papel.
Teresa adoeceu nesse inverno. Passei noites em claro ao lado dela no hospital público de Santa Maria, ouvindo-lhe a respiração pesada e frágil. Segurei-lhe a mão até ao último suspiro.
No funeral estavam apenas meia dúzia de pessoas: dois vizinhos, uma amiga dela dos tempos do hospital e eu. Nenhum dos meus filhos apareceu.
Agora passo os dias sozinho nesta casa grande demais para um só homem. O cheiro das flores frescas já não enche a sala; o rádio antigo está mudo; os risos desapareceram com Teresa.
Às vezes pergunto-me se valeu a pena apostar tudo numa última esperança de felicidade. Será que o amor justifica perder tudo o resto? Ou será que envelhecer é mesmo isto: escolher entre dois tipos diferentes de solidão?
E vocês? O que fariam no meu lugar?