“Ajudei a minha filha a comprar uma casa”: Agora nem um sofá tenho onde dormir

— Mãe, não podes ficar cá esta noite. O João tem de acordar cedo para o trabalho e eu preciso de descansar. — A voz da Mariana ecoou fria pela sala, enquanto eu segurava a mala na mão, ainda sem acreditar no que ouvia.

Olhei para ela, para o chão de madeira que ajudei a escolher, para as paredes que pintei com as minhas próprias mãos. O cheiro a café fresco ainda pairava no ar, misturado com o perfume doce da infância dela — ou talvez fosse só a minha memória a pregar partidas. Senti o peito apertar-se, como se cada palavra dela fosse um prego cravado no meu coração.

— Mariana, é só por esta noite. O comboio foi cancelado e não tenho onde ficar — tentei argumentar, a voz trémula, quase suplicante.

Ela desviou o olhar, mexendo nervosamente nas chaves do carro.

— Mãe, já te disse… Não é uma boa altura. O João anda stressado com o trabalho, a Leonor está doente… Não compliques, por favor.

A Leonor. A minha neta. Quantas vezes fiquei eu acordada noites inteiras com ela ao colo, quando era bebé e a Mariana precisava de dormir? Quantas vezes deixei de comprar roupa nova para mim para poder pagar as fraldas, os medicamentos, as contas da casa?

Sentei-me no sofá — aquele mesmo sofá que comprei em segunda mão quando ela foi viver sozinha, porque não tinha dinheiro para mais. Lembrei-me do dia em que assinei como fiadora do empréstimo para esta casa. O banco não queria aprovar, mas eu insisti. Vendi as minhas jóias de família para ajudar na entrada. Passei anos a poupar cada cêntimo do meu ordenado de empregada de limpeza para garantir que ela nunca passasse necessidades.

Agora, nem um sofá tenho onde dormir.

— Mariana… — comecei, mas ela já estava a olhar para o telemóvel, impaciente.

— Mãe, por favor. Não compliques. Vai para casa da tia Rosa ou arranja um hotel. Eu não posso mesmo.

Levantei-me devagar, sentindo o peso dos anos nos ossos e das mágoas na alma. Peguei na mala e saí sem olhar para trás. O ar frio da noite cortou-me a pele, mas nada doía tanto como aquela rejeição.

Caminhei pelas ruas de Lisboa, as luzes amarelas dos candeeiros desenhando sombras longas no passeio. Lembrei-me de quando ela era pequena e me dizia: “Mãe, nunca te vou deixar sozinha.” Lembrei-me das promessas sussurradas ao ouvido durante noites de febre e medo: “Eu vou cuidar de ti quando fores velhinha.”

Onde ficaram essas promessas?

Cheguei ao portão da tia Rosa já com os olhos inchados de tanto chorar. Toquei à campainha e esperei. A porta abriu-se devagar.

— Ó Maria do Céu! O que fazes aqui a esta hora? — perguntou a tia Rosa, surpresa.

— Preciso de um sítio para dormir… — respondi, tentando conter as lágrimas.

Ela puxou-me para dentro sem hesitar.

— Anda cá, minha querida. Senta-te. Queres chá? — perguntou, já a mexer nas chávenas.

Sentei-me à mesa da cozinha, rodeada pelo cheiro familiar de pão quente e alfazema. A tia Rosa olhou para mim com preocupação.

— O que se passou?

Contei-lhe tudo. Cada detalhe. Cada palavra fria da Mariana. Cada memória que me atravessava como uma faca afiada.

— Não percebo… Dei-lhe tudo! Tudo! Como é que agora não há espaço para mim na vida dela?

A tia Rosa abanou a cabeça.

— Os filhos são assim… Acham que o mundo gira à volta deles até perceberem que um dia também vão precisar de colo.

Ficámos em silêncio durante uns minutos. O relógio da parede marcava as horas com um tique-taque compassado e cruel.

— E agora? — perguntei baixinho.

A tia Rosa suspirou.

— Agora descansas aqui. Amanhã logo se vê.

Mas eu não consegui dormir nessa noite. Fiquei a olhar para o teto, a pensar em tudo o que tinha feito pela Mariana. Lembrei-me das vezes em que trabalhei horas extra para lhe pagar explicações de matemática; das noites em claro quando ela chegava tarde das festas; das discussões com o pai dela quando ele dizia que eu era demasiado mole com a miúda.

O pai dela… Partiu cedo demais. Fiquei sozinha com uma adolescente rebelde e um salário mínimo. Mas nunca me faltou coragem nem amor para lutar por ela.

No dia seguinte, tentei ligar-lhe. Queria pedir desculpa — porquê? Nem sei bem — ou talvez só ouvir a voz dela e sentir que ainda havia esperança. Mas ela não atendeu.

Passei os dias seguintes na casa da tia Rosa, sentindo-me uma intrusa na própria família. A prima Ana vinha visitar-nos e olhava-me com pena disfarçada; o tio Manuel fazia perguntas sobre a Mariana como se não soubesse da nossa zanga.

Uma tarde, decidi ir até ao jardim onde costumava levar a Mariana em criança. Sentei-me num banco ao sol e vi mães com filhos pequenos a brincar na relva. Senti uma pontada de inveja — ou talvez fosse só saudade dos tempos em que tudo parecia mais simples.

De repente ouvi uma voz atrás de mim:

— Mãe?

Virei-me devagar. Era a Mariana. Trazia a Leonor pela mão.

— Podemos falar? — perguntou ela, hesitante.

Assenti em silêncio.

Sentámo-nos as três no banco do jardim. A Leonor correu logo para o escorrega, deixando-nos sozinhas.

— Mãe… Desculpa pelo outro dia — começou a Mariana, evitando o meu olhar. — Eu estava cansada… O João anda impossível… E eu sinto-me tão sobrecarregada…

Olhei para ela e vi não só a minha filha adulta mas também aquela menina frágil que tantas vezes abracei durante tempestades reais e imaginárias.

— Mariana… Eu só queria sentir que ainda faço parte da tua vida. Que ainda sou importante para ti.

Ela mordeu o lábio inferior, emocionada.

— És importante! Só que às vezes sinto que esperas demasiado de mim… Que nunca vou conseguir retribuir tudo o que fizeste por mim…

Ficámos em silêncio durante uns instantes. O vento fazia dançar as folhas das árvores e eu sentia as lágrimas ameaçarem cair outra vez.

— Eu não quero nada em troca — disse finalmente, baixinho. — Só quero sentir que tenho um lugar ao teu lado.

Ela pegou-me na mão.

— Tens sempre lugar comigo, mãe… Só preciso de aprender a gerir tudo isto…

Abraçámo-nos ali mesmo, no meio do jardim, enquanto a Leonor gritava do escorrega: “Avó! Olha para mim!”

Nesse momento percebi que talvez nunca recebesse da Mariana aquilo que idealizei durante anos. Talvez os filhos nunca consigam retribuir tudo o que os pais fazem por eles — e talvez isso seja mesmo assim.

Mas será justo esperar tanto? Será possível amar sem esperar nada em troca? E vocês? Já sentiram este vazio entre aquilo que damos e aquilo que recebemos?