Ainda tens coragem de me julgar? – O fim de um casamento português
— Ainda estás na cama, Sofia? Já são quase nove! O Miguel precisa de pequeno-almoço, não te esqueças! — A voz da minha sogra, Dona Lurdes, ecoou pelo corredor, atravessando a porta do nosso quarto como uma faca afiada. Senti o peito apertar-se, os olhos ainda pesados de uma noite mal dormida. Olhei para o lado: o Miguel, o meu marido, ressonava profundamente, alheio ao mundo e, sobretudo, alheio a mim.
Levantei-me devagar, tentando não fazer barulho. Não queria mais discussões matinais. Já bastava o que vinha depois. Na cozinha, Dona Lurdes já mexia nas panelas, como se fosse ela a dona da casa. — Não percebo como é que consegues dormir tanto — murmurou, sem sequer olhar para mim. — No meu tempo, as mulheres já tinham tudo pronto antes dos homens acordarem.
Apertei os lábios, engolindo as palavras que me queimavam a garganta. “No teu tempo”, pensei. No teu tempo as mulheres não tinham voz. No teu tempo ninguém perguntava se estavam felizes.
Miguel apareceu pouco depois, despenteado e com um sorriso preguiçoso. — Bom dia, mãe. Bom dia, Sofia. O café está pronto?
— Está sim, querido — respondeu a mãe dele antes de eu conseguir abrir a boca. Sentei-me à mesa em silêncio, sentindo-me uma estranha na minha própria casa.
O pequeno-almoço foi servido como sempre: Dona Lurdes a controlar tudo, Miguel a queixar-se do trânsito e eu a tentar não chorar. Quando finalmente saíram para o trabalho — sim, Dona Lurdes ainda fazia questão de levar o filho ao escritório todos os dias — fiquei sozinha com os meus pensamentos e uma pilha de loiça suja.
Lavei os pratos mecanicamente, mas por dentro fervilhava. Como é que cheguei aqui? Eu, que sempre sonhei ser independente, livre… Agora era apenas uma sombra da mulher que fui. Recordei os tempos em que Miguel me fazia rir até às lágrimas, quando prometíamos nunca ser como os nossos pais. Mas as promessas são fáceis quando se é jovem.
O telefone tocou. Era a minha mãe.
— Sofia, está tudo bem? — perguntou com aquela voz doce mas preocupada.
— Está… está tudo igual — respondi, tentando soar convincente.
— Sabes que podes sempre voltar para casa — disse ela baixinho. — Não tens de aguentar tudo sozinha.
Suspirei. — Eu sei, mãe. Só preciso de pensar.
Desliguei e sentei-me no sofá. Olhei à volta: fotografias do casamento na parede, lembranças de viagens felizes que agora pareciam pertencer a outra pessoa. Senti uma lágrima escorrer pelo rosto.
À noite, quando Miguel chegou, vinha cansado e mal-humorado.
— O jantar está atrasado? — perguntou sem sequer me olhar nos olhos.
— Tive um dia difícil… — comecei eu.
— Difícil? Estiveste em casa o dia todo! — interrompeu ele, levantando a voz. — Não percebo porque é que estás sempre tão cansada.
Senti o sangue ferver-me nas veias. — Porque não faço só as tarefas da casa! Faço tudo! Até respiro por ti se for preciso!
Ele bufou e saiu da sala. Fiquei ali parada, com as mãos a tremer. Pela primeira vez em muito tempo, não chorei. Senti raiva. Senti vontade de gritar.
Naquela noite não dormi. Fiquei acordada a olhar para o teto, a pensar em todas as vezes que me calei para evitar discussões. Em todas as vezes que pus as necessidades dele à frente das minhas. Em todas as vezes que Dona Lurdes me fez sentir pequena na minha própria casa.
Na manhã seguinte, tomei uma decisão. Arrumei algumas roupas numa mala pequena e escrevi um bilhete:
“Miguel,
Preciso de encontrar quem sou sem ti e sem a tua mãe a controlar cada passo meu. Não quero ser só mais uma mulher infeliz nesta casa. Preciso de respirar. Adeus.
Sofia”
Saí sem olhar para trás. O ar frio da manhã soube-me a liberdade e medo ao mesmo tempo. Liguei à minha mãe e pedi-lhe para me ir buscar à estação.
Durante semanas chorei tudo o que tinha para chorar. Senti culpa por abandonar o casamento, medo do futuro e até saudades dos pequenos momentos bons. Mas também senti alívio por já não ter de viver sob o olhar crítico de Dona Lurdes ou sob o peso das expectativas do Miguel.
Os dias foram passando e comecei a reconstruir-me aos poucos: arranjei um emprego numa livraria local, reencontrei amigas antigas e voltei a rir sem medo de ser julgada.
Um dia recebi uma mensagem do Miguel:
“Podemos falar? Sinto a tua falta. A minha mãe também pergunta por ti todos os dias.”
Sorri tristemente para o telemóvel. Respondi apenas:
“Preciso de cuidar de mim agora. Espero que um dia entendas porquê.”
Hoje olho para trás e vejo aquela Sofia perdida com ternura e compaixão. Sei que muitas mulheres portuguesas vivem histórias parecidas: presas entre tradições antigas e sonhos modernos, entre o dever e o desejo de serem felizes.
Pergunto-me: quantas Sofias continuam caladas por medo ou vergonha? Quantas ainda acreditam que têm de aguentar tudo sozinhas? E tu… já te sentiste assim alguma vez?