Adeus, Mas Não Te Esqueças do Lixo! O Dia em que o Miguel Encontrou o Meu Cabelo na Cadeira
— Isto é teu? — perguntou o Miguel, segurando entre os dedos um fio de cabelo loiro, quase translúcido à luz da manhã que entrava pela janela da sala. O seu tom era cortante, quase frio, mas os olhos denunciavam uma tempestade prestes a rebentar.
Por um segundo, hesitei. O meu cabelo era castanho-escuro, sempre fora. O fio que ele segurava não podia ser meu. Senti o sangue a gelar-me nas veias. A minha cabeça começou a rodopiar por todas as possibilidades: teria sido a minha irmã, a Teresa, que me visitara na semana passada? Ou talvez a vizinha de cima, a Dona Lurdes, que às vezes vinha pedir açúcar? Mas o olhar do Miguel não deixava espaço para dúvidas ou desculpas.
— Não sei de quem é — respondi, tentando manter a voz firme. Mas ele já não me ouvia. Caminhava de um lado para o outro da sala, os passos pesados no soalho antigo do nosso apartamento em Lisboa.
— Não sabes? — repetiu, quase a gritar. — Então quem é que andou aqui em casa enquanto eu estava a trabalhar?
O silêncio caiu entre nós como uma cortina de ferro. Senti as lágrimas a quererem saltar-me dos olhos, mas forcei-me a não ceder. Não naquele momento. Não queria dar-lhe esse poder.
— Miguel, por favor… — tentei aproximar-me dele, mas ele afastou-se bruscamente.
— Não me toques! — gritou. — Eu sabia! Sempre desconfiei que havia qualquer coisa…
Aquelas palavras feriram-me mais do que qualquer outra coisa. Sempre tentei ser transparente com ele, mas agora percebia que talvez nunca tivesse conseguido. A nossa relação estava cheia de pequenas rachaduras, e aquele fio de cabelo era apenas o pretexto para tudo ruir.
O telefone tocou. Era a minha mãe. Ignorei. Não tinha forças para mais ninguém naquele momento. Mas o Miguel não parava.
— Diz-me lá: foi o Rui? Ou aquele teu colega novo do escritório? — insistia ele, cada vez mais fora de si.
— Não foi ninguém! — gritei de volta, finalmente perdendo o controlo. — Porque é que não confias em mim?
Ele riu-se, um riso amargo e sem alegria.
— Confiança? Depois disto? — atirou o fio de cabelo para cima da mesa como se fosse uma prova irrefutável do meu crime.
Sentei-me no sofá, as mãos a tremerem. O apartamento parecia encolher à minha volta. Lembrei-me de todas as vezes em que o Miguel chegava tarde do trabalho e eu ficava sozinha, a olhar para o relógio e a imaginar onde estaria. Lembrei-me das discussões sobre dinheiro, sobre os meus horários no escritório de advogados, sobre os jantares de família em que ele se sentia deslocado.
A porta bateu com força quando ele saiu. Fiquei ali sentada, sozinha com o silêncio e com aquele maldito fio de cabelo loiro na mesa.
Horas depois, quando finalmente consegui levantar-me, liguei à Teresa.
— Olá mana… — disse ela, a voz arrastada do outro lado da linha.
— Teresa… tu estiveste cá na semana passada, não estiveste? — perguntei, tentando soar casual.
— Estive… porque? — respondeu ela.
— Deixaste algum cabelo loiro na minha sala?
Ela riu-se.
— Achas? Eu pintei o cabelo de castanho há meses! — disse ela. — Está tudo bem contigo?
Não consegui responder. Desliguei sem dizer mais nada.
Naquela noite não dormi. O apartamento parecia maior sem o Miguel. O silêncio era ensurdecedor. Fui até à cozinha buscar um copo de água e deparei-me com uma carta em cima da bancada. Era da minha mãe. Tinha deixado ali há dias e esquecera-me completamente.
Abri-a com mãos trémulas:
“Filha,
Sei que tens passado por momentos difíceis com o Miguel. Queria só lembrar-te que não estás sozinha. Às vezes as pessoas magoam-se porque têm medo de perder quem amam. Eu e o teu pai também passámos por isso…”
As palavras dela ecoaram dentro de mim como um bálsamo e uma ferida ao mesmo tempo. Senti-me pequena, vulnerável, mas também estranhamente aliviada por saber que não era a única a passar por aquilo.
No dia seguinte, fui trabalhar como se nada tivesse acontecido. No escritório, o Rui olhou para mim com preocupação.
— Estás bem? — perguntou ele.
Assenti com a cabeça, mas sabia que não estava. Passei o dia inteiro a pensar no Miguel, no fio de cabelo loiro e em tudo o que aquilo simbolizava: desconfiança, insegurança, medo do abandono.
Quando cheguei a casa ao fim do dia, encontrei o Miguel sentado nas escadas do prédio. Tinha os olhos vermelhos e parecia mais velho do que nunca.
— Podemos falar? — pediu ele, num tom quase suplicante.
Subimos juntos até ao apartamento. Sentámo-nos frente a frente na sala onde tudo começara.
— Desculpa — disse ele finalmente. — Fui um parvo. Não devia ter desconfiado de ti assim…
Olhei para ele durante longos segundos antes de responder.
— Não foi só o fio de cabelo, pois não? — perguntei baixinho.
Ele abanou a cabeça.
— Não… Tenho medo de te perder. Sinto que já não sou suficiente para ti…
As lágrimas correram-me pelo rosto sem eu conseguir controlar.
— Eu também tenho medo — confessei. — Medo de não ser suficiente para ti. Medo de te magoar sem querer…
Ficámos ali sentados durante muito tempo, sem saber como reconstruir aquilo que se tinha partido tão facilmente por causa de algo tão insignificante como um fio de cabelo loiro.
Nos dias seguintes tentámos voltar à normalidade, mas nada era igual. O Miguel tornou-se mais distante; eu tornei-me mais fechada. As conversas tornaram-se superficiais e os silêncios mais longos.
Foi então que recebi uma mensagem inesperada da Dona Lurdes:
“Filha, desculpa lá… Acho que deixei cair um bocado do meu aplique loiro na tua sala quando fui aí buscar açúcar! Se encontraste alguma coisa estranha, era meu!”
Ri-me sozinha pela primeira vez em semanas. Mostrei a mensagem ao Miguel quando ele chegou a casa naquela noite. Ele olhou para mim com um misto de alívio e vergonha.
— Afinal era só isso… — murmurou ele.
Mas sabíamos ambos que já não era só isso há muito tempo.
Pouco tempo depois decidimos separar-nos. Não foi fácil; partilharam-se lágrimas e memórias dolorosas enquanto dividíamos os livros e os discos na sala onde tudo começara e acabara.
Hoje vivo sozinha naquele mesmo apartamento em Lisboa. Às vezes ainda encontro fios de cabelo loiro perdidos nos cantos da casa e sorrio com tristeza ao lembrar-me de como algo tão pequeno pode mudar tanto uma vida inteira.
Pergunto-me muitas vezes: quantas relações se desfazem por coisas tão insignificantes? E será que alguma vez aprendemos realmente a confiar uns nos outros?