Acolhi a minha prima em casa, mas ela roubou-me mais do que bens – será que ainda se pode confiar na família?
— Não me olhes assim, Mariana. Eu não tive escolha! — A voz da Andreia ecoou pela sala, trémula, quase suplicante, enquanto eu segurava nas mãos a carteira vazia e o coração despedaçado.
Naquele instante, tudo o que eu conhecia sobre confiança e família parecia desmoronar-se. O cheiro do café frio na mesa misturava-se com o perfume barato da Andreia, que ainda pairava no ar desde que ela chegara há três semanas. Lembro-me de como a abracei à porta, sentindo-me orgulhosa por poder ajudar alguém da minha família. “A família é tudo”, dizia sempre a minha mãe, e eu cresci a acreditar nisso com uma fé quase ingénua.
Quando a Andreia me ligou, chorosa, a pedir abrigo porque o namorado a tinha posto na rua, não hesitei. O meu T2 em Almada era pequeno, mas sempre coube mais um. Preparei-lhe o sofá-cama da sala, comprei-lhe um pijama novo e até lhe deixei espaço no armário. Nos primeiros dias, ela parecia grata: ajudava-me com as tarefas, fazia companhia à minha filha Inês, de oito anos, e até cozinhava o arroz de pato como só a minha tia Rosa sabia fazer.
Mas depressa começaram os sinais. Pequenas mentiras: um cigarro escondido na varanda, uma chamada misteriosa à noite, uns euros que desapareciam da carteira. Eu queria acreditar que era só o stress da situação. “Ela está fragilizada”, dizia para mim mesma, tentando abafar aquela voz interior que me avisava para ter cuidado.
Uma noite, acordei com um barulho estranho. Levantei-me em bicos de pés e vi luz na sala. A Andreia estava sentada no chão, rodeada das minhas coisas: a caixa das joias da minha mãe, o tablet da Inês, até o envelope onde guardava algum dinheiro para as férias. Ela chorava baixinho, mas as mãos mexiam-se rápidas demais para quem procura consolo.
— O que estás a fazer? — perguntei, a voz presa na garganta.
Ela olhou para mim com olhos de animal encurralado. — Mariana… eu só queria… — Mas não terminou a frase. Levantou-se num salto e fugiu para o quarto.
No dia seguinte, tentei falar com ela. Sentei-me à mesa com um café forte e esperei que viesse. Quando finalmente apareceu, trazia uma expressão dura e cansada.
— Não é o que parece — disse ela, antes de eu abrir a boca.
— Então explica-me tu — pedi, tentando manter a calma.
Ela começou a falar de dívidas, de ameaças do ex-namorado, de um desespero que eu não conseguia compreender. Mas nada justificava mexer nas minhas coisas, roubar-me o pouco que tinha poupado com tanto esforço.
A discussão subiu de tom. A Inês apareceu à porta do quarto, assustada. Senti-me péssima mãe por expor a minha filha àquele ambiente. Quando Andreia saiu porta fora naquela tarde, levando consigo o pouco dinheiro que restava no envelope e uma pulseira de ouro da minha mãe, senti um vazio maior do que qualquer perda material.
Os dias seguintes foram um nevoeiro de emoções: raiva, tristeza, vergonha. Tive de explicar à Inês porque é que a prima já não estava connosco. Tive de ouvir os conselhos amargos da minha irmã Sofia: “Eu avisei-te! Sempre foste demasiado boa para o teu próprio bem.” E tive de enfrentar os olhares dos vizinhos quando souberam do que se tinha passado.
No trabalho, custava-me concentrar. Os colegas perguntavam se estava tudo bem e eu respondia com um sorriso forçado. Só à noite, quando a casa estava em silêncio e a Inês dormia agarrada ao urso de peluche, é que me permitia chorar.
Uma semana depois, recebi uma chamada da Andreia. Atendi com as mãos a tremer.
— Mariana… desculpa. Eu estraguei tudo — disse ela entre soluços. — Preciso de ajuda outra vez.
Senti uma raiva surda crescer dentro de mim. Como podia ela pedir-me ajuda depois de tudo? Mas também senti pena — por ela, por mim, por todas as vezes em que quis acreditar que as pessoas mudam.
— Não posso ajudar-te mais, Andreia — respondi com voz firme. — Espero que encontres o teu caminho, mas aqui acabou.
Desliguei e fiquei ali sentada no escuro durante muito tempo. Pensei na minha mãe e no seu lema: “A família é tudo”. Mas será mesmo? Até onde devemos ir por quem partilha o nosso sangue? E quando é que proteger-nos a nós próprios deixa de ser egoísmo para passar a ser sobrevivência?
Hoje olho para trás e vejo uma Mariana diferente: menos ingénua, talvez mais dura, mas também mais consciente dos seus limites. Ainda acredito no valor da família — mas aprendi que confiança não se impõe pelo sangue; conquista-se todos os dias.
E vocês? Já sentiram esta dor de ser traídos por quem mais amam? Será que perdoar é sinal de fraqueza ou de coragem?