Abri o Coração, Perdi Tudo: Como Fui Enganada e O Que Aprendi

— Mãe, tu não podes continuar assim! — gritou a minha filha Ana ao telefone, a voz embargada entre o desespero e a raiva. — Não podes confiar em toda a gente que bate à tua porta!

Sentei-me na cadeira da cozinha, as mãos a tremerem, o telefone quase a escorregar-me dos dedos. O cheiro do café frio misturava-se com o perfume antigo das flores que o meu marido, o António, costumava trazer do quintal. Ele já partira há cinco anos, mas ainda falava com ele todas as noites, em silêncio. Agora, era só eu e as paredes deste T2 em Almada, onde cada canto guardava uma memória.

— Ana, eles pareciam tão simpáticos… — tentei justificar-me, mas a minha voz saiu num sussurro. — O João até me ajudou com as compras…

— Mãe! — interrompeu ela. — Não sabes quem são essas pessoas! Podiam ser criminosos!

Suspirei. Talvez ela tivesse razão. Mas a solidão pesa mais do que qualquer medo. Desde que o António morreu e os meus netos cresceram e foram para longe, os dias tornaram-se longos demais. O silêncio era ensurdecedor. Quando o João e a Sónia apareceram à porta, dizendo que eram voluntários de uma associação local para ajudar idosos, senti-me vista pela primeira vez em anos.

— Dona Maria, precisa de alguma coisa? — perguntou o João naquele dia, sorrindo com uma gentileza desarmante. Trazia uma camisola gasta e um olhar cansado, mas havia algo de familiar nele, como se fosse um vizinho antigo.

A Sónia era mais reservada, mas sempre pronta para ajudar. Trouxeram-me pão fresco, ajudaram-me a arrumar a despensa e até trocaram uma lâmpada do corredor. Em poucos dias, tornaram-se parte da minha rotina. Comecei a confiar neles como se fossem família.

— A senhora devia ter alguém consigo — disse a Sónia uma tarde, enquanto me ajudava a dobrar roupa. — Nunca se sabe o que pode acontecer…

Sorri-lhe, sentindo-me protegida. Talvez fosse isso que me faltava: alguém que se preocupasse comigo.

Mas tudo mudou numa noite de chuva. Acordei com barulhos na sala. O coração disparou. Levantei-me devagar e vi sombras a mexerem-se junto ao móvel onde guardava as minhas economias — dinheiro que juntei durante anos para os meus netos.

— Quem está aí? — perguntei, a voz trémula.

O João apareceu à porta da sala, o olhar frio como nunca tinha visto antes.

— Desculpe, Dona Maria — murmurou ele. — Mas precisamos disto mais do que a senhora.

A Sónia estava ao lado dele, de cabeça baixa. Não disse nada. Só me olhou com uns olhos vazios de remorsos.

Fiquei paralisada. Não consegui gritar nem correr. Vi-os levarem tudo: dinheiro, jóias antigas da minha mãe, até o relógio do António. Quando saíram, deixaram-me caída no chão da sala, sozinha e vazia.

Os dias seguintes foram um borrão de vergonha e tristeza. Não contei logo à Ana. Como podia admitir que tinha sido tão ingénua? Passei noites sem dormir, revivendo cada momento em que confiei neles.

Quando finalmente contei à minha filha, ela chorou comigo ao telefone.

— Mãe… porque não me disseste logo? — soluçou ela.

— Não queria preocupar-te… já tens tanto com que lidar…

Ela veio de Lisboa no dia seguinte. Abraçou-me como quando era pequena e eu lhe curava os joelhos esfolados.

— Vamos à polícia — disse ela com firmeza.

Fizemos queixa, claro. Mas disseram-nos logo que era difícil apanhar gente assim. Mudam de nome, de bairro… desaparecem como fumo.

Os vizinhos começaram a olhar para mim com pena ou desconfiança. Alguns diziam baixinho: “Coitada da Maria… sempre tão boa pessoa”. Outros evitavam-me no supermercado.

A vergonha era pior do que a perda material. Senti-me velha e inútil. A Ana queria que eu fosse viver com ela e o marido, mas recusei. Não queria ser um peso.

Comecei a fechar-me cada vez mais em casa. O telefone tocava menos vezes. Os netos mandavam mensagens apressadas: “Avó, está tudo bem?” Eu respondia sempre: “Está tudo ótimo!” Mentira piedosa para não os preocupar.

Uma tarde, ouvi baterem à porta. O coração disparou de novo. Espreitei pela janela: era o senhor Manuel do terceiro andar.

— Dona Maria? Precisa de alguma coisa? — perguntou ele, gentilmente.

Hesitei antes de abrir a porta. Mas abri. Ele trouxe-me sopa quente e ficou comigo a conversar sobre futebol e saudades do Alentejo.

Nesse dia percebi que ainda havia bondade no mundo — mas também aprendi a ser mais cautelosa.

A Ana continua preocupada comigo. Às vezes discute com o marido por minha causa:

— Ela não pode ficar sozinha! — ouço-a dizer na cozinha quando vou lá jantar aos domingos.

O genro acha que exagera:

— A tua mãe é teimosa… sempre foi! — responde ele.

Eu sorrio por dentro. Talvez seja mesmo teimosa. Mas também sou feita das minhas cicatrizes.

Agora tranco sempre bem as portas e olho duas vezes antes de confiar em alguém novo. Mas não deixei de acreditar na bondade — só aprendi que é preciso protegê-la melhor.

Às vezes pergunto-me: será que fui ingénua ou apenas humana? Quantos de nós já não caíram na armadilha da solidão?

E vocês? Já confiaram demais em alguém e pagaram caro por isso?