Abandonada à Porta de Uma Igreja: As Lutas Invisíveis de Mariana
— Mariana, não mexas nisso! — gritou a Dona Lurdes, a diretora do lar, quando me viu a remexer na caixa das cartas perdidas. Tinha sete anos e uma esperança teimosa de que, entre aquelas folhas amareladas, estivesse uma pista sobre quem eram os meus pais. O coração batia-me tão forte que quase abafava o som dos passos apressados da Dona Lurdes pelo corredor.
A verdade é que nunca soube quem eram. Dizem que fui encontrada enrolada numa manta azul, com um bilhete escrito à pressa: “Perdoem-me. Não posso cuidar dela.” Cresci a perguntar-me se era defeituosa, se havia algo em mim que justificasse aquele abandono. As outras crianças do lar tinham histórias parecidas, mas eu sentia-me sempre mais sozinha, como se o meu vazio fosse maior.
A minha infância foi feita de silêncios e olhares desconfiados. Lembro-me da primeira vez que fui adotada. O casal, a Ana e o Rui, pareciam perfeitos. Ela cheirava a lavanda e ele fazia piadas secas ao jantar. Mas bastaram três meses para perceberem que eu não era o bebé dócil que esperavam. Tinha crises de choro, pesadelos, e uma raiva surda que não sabia explicar. Uma noite ouvi-os discutir na cozinha:
— Não aguento mais, Ana! Ela não nos deixa dormir! — sussurrava Rui, mas eu ouvia tudo.
— Ela precisa de tempo, Rui. Não vês que está assustada?
— E nós? Não merecemos paz?
Na manhã seguinte, voltaram a levar-me ao lar. A Ana chorava, mas o Rui nem me olhou nos olhos. Senti-me como um objeto devolvido à loja por defeito de fabrico.
Os anos passaram e fui aprendendo a esconder as emoções. No liceu, já em Sintra, fingia ser forte. Tinha inveja das colegas que reclamavam dos pais por coisas pequenas: “A minha mãe não me deixa sair à noite”, “O meu pai embirra com as minhas notas”. Eu só queria ter alguém para discutir comigo.
Foi nessa altura que conheci o Tiago. Era rebelde, tinha uma mota velha e um sorriso atrevido. Pela primeira vez senti-me vista. Ele dizia:
— Tu és diferente, Mariana. Tens uma força nos olhos que nunca vi em ninguém.
Mas o Tiago também tinha os seus fantasmas. A mãe dele era alcoólica e o pai tinha fugido para França quando ele era pequeno. Juntámo-nos na dor e na revolta contra o mundo. Começámos a faltar às aulas, a fugir para Lisboa só para sentir o vento na cara e fingir que éramos livres.
Uma noite, depois de uma discussão feia com a Dona Lurdes — ela apanhou-me a roubar dinheiro da caixa do lar para comprar bilhetes de comboio — fugi com o Tiago. Dormimos numa casa abandonada em Alcântara. Ele prometeu que íamos começar uma vida nova juntos.
Mas a liberdade tem um preço alto quando não se tem para onde ir. O dinheiro acabou depressa e o Tiago começou a envolver-se com pessoas perigosas. Uma noite apareceu todo ensanguentado:
— Mariana, temos de fugir daqui! Eles vão atrás de mim!
O medo tomou conta de mim. Percebi que estava a repetir o ciclo do abandono — desta vez era eu quem tinha de decidir se ficava ou fugia. Voltei ao lar sozinha naquela madrugada chuvosa. A Dona Lurdes abraçou-me sem dizer nada. Pela primeira vez senti algum calor naquele lugar frio.
Os anos seguintes foram de luta constante contra mim mesma. Tentei focar-me nos estudos, mas as marcas do passado pesavam sempre mais nos dias cinzentos. Aos 18 anos tive de sair do lar — era a lei. Arranjei um quarto minúsculo em Benfica e um trabalho numa pastelaria.
A dona do café, a Senhora Rosa, era dura mas justa:
— Aqui trabalha-se muito, menina Mariana, mas se fores honesta comigo nunca te faltará pão.
Aos poucos fui ganhando confiança. Os clientes habituais começaram a perguntar por mim quando faltava. Um deles, o Senhor António, trazia-me livros usados:
— Para uma menina tão esperta como tu, tens de alimentar a cabeça também.
Foi ele quem me incentivou a candidatar-me à universidade. Consegui entrar em Serviço Social no ISCTE. Trabalhava de manhã e estudava à noite. Havia dias em que achava que ia desmaiar de cansaço, mas nunca desisti.
Durante esse tempo tentei procurar os meus pais biológicos. Descobri apenas que a minha mãe era muito jovem quando me teve e que o meu pai nunca quis saber de mim. Fiquei dias sem comer depois dessa notícia — como se todo o esforço tivesse sido em vão.
Mas depois percebi: eu não era definida pelo abandono deles. Era definida pelas escolhas que fazia todos os dias para sobreviver.
Hoje tenho 28 anos e trabalho num centro de acolhimento para jovens em risco em Almada. Todos os dias olho nos olhos dos miúdos e vejo neles o reflexo da Mariana pequena — aquela menina assustada à porta da igreja.
Às vezes pergunto-me: será que algum dia vou sentir-me realmente parte de uma família? Ou será que somos todos ilhas à deriva à espera de sermos encontrados?
E vocês? Acham que as feridas do abandono algum dia cicatrizam completamente? O que é afinal pertencer?