A Vingança da Dona Laura: Entre a Amargura e o Perdão
— Não pode levar mais de duas embalagens de arroz, minha senhora. — O tom seco do rapaz atrás do balcão cortou-me como uma faca. Senti o rosto a arder, não só pela vergonha, mas pela raiva que me subiu à cabeça. Chamo-me Laura, tenho setenta e três anos e, naquele instante, jurei a mim mesma que aquele rapaz — o Hugo, segundo a placa no peito — não ia ficar impune.
Saí do supermercado com as mãos a tremer, o saco de compras a bater-me na perna e o orgulho ferido. A fila atrás de mim tinha ouvido tudo. A dona Emília, sempre pronta para o mexerico, olhou-me de lado. O senhor António, que nunca perde uma oportunidade para comentar a vida alheia, murmurou qualquer coisa sobre “velhos a quererem tudo para eles”. Eu só queria desaparecer.
Cheguei a casa e atirei o saco para cima da mesa da cozinha. O silêncio era ensurdecedor. Desde que o meu marido morreu, há cinco anos, os dias arrastam-se entre novelas e chávenas de chá frias. A minha filha, Mariana, liga-me uma vez por semana — quando se lembra. O meu neto, Pedro, só aparece quando precisa de dinheiro para a faculdade. Senti-me tão pequena naquele momento… mas também determinada.
— Não vou deixar isto assim — murmurei para mim mesma. — Ele vai aprender a não humilhar uma senhora da minha idade.
Passei a noite em claro, a matutar num plano. Lembrei-me de histórias antigas, das partidas que pregava em miúda aos vizinhos da aldeia. Mas agora era diferente. Agora era uma questão de honra.
No dia seguinte, vesti o meu melhor casaco — aquele azul-escuro que só uso em ocasiões especiais — e fui ao café da dona Rosa. Sentei-me junto à janela e esperei. Não demorou muito até ver o Hugo a sair do supermercado para fumar um cigarro. Levantei-me devagar e aproximei-me.
— Bom dia, Hugo — disse eu, com um sorriso forçado.
Ele olhou-me desconfiado. — Bom dia… precisa de alguma coisa?
— Só queria dizer-lhe que ontem foi muito desagradável comigo. Não esperava isso de alguém tão jovem.
Ele encolheu os ombros. — São as regras da loja, minha senhora.
— Pois… as regras. — Fiz uma pausa dramática. — Sabe, eu conheço o gerente há muitos anos. Talvez lhe faça uma visita.
Vi o pânico passar-lhe pelos olhos. Ele apagou o cigarro à pressa.
— Não precisa de fazer isso… — balbuciou ele.
— Veremos — respondi, virando-lhe as costas.
Voltei ao café e pedi um galão. A dona Rosa aproximou-se.
— Que se passa, Laura? Pareces nervosa.
Contei-lhe tudo em voz baixa. Ela abanou a cabeça.
— Esses miúdos não têm respeito nenhum. Mas olha que o Hugo… dizem que anda com problemas em casa. O pai está doente e ele é quem sustenta a família agora.
Fiquei calada. Não queria sentir pena dele. Não depois do que me fez passar.
Durante os dias seguintes, espalhei discretamente pelo bairro que o Hugo tinha sido malcriado comigo. No cabeleireiro, na farmácia, até na missa ao domingo. As pessoas começaram a olhar para ele de lado no supermercado. Vi-o várias vezes cabisbaixo, a evitar os olhares dos clientes.
Uma tarde, ao sair do supermercado com meia dúzia de maçãs, ouvi duas senhoras cochicharem:
— É aquele rapaz… dizem que foi muito mal-educado com a dona Laura.
Senti uma pontada de satisfação misturada com culpa. Era isto vingança? Era isto justiça?
Nessa noite, recebi uma chamada inesperada da Mariana.
— Mãe, ouvi dizer que andas metida numa confusão com um rapaz do supermercado. O Pedro contou-me…
— Não é nada demais — respondi, tentando minimizar.
— Mãe, tu sabes como é difícil arranjar trabalho agora. E se ele perder o emprego por tua causa?
Fiquei sem palavras. Nunca pensei nisso dessa forma.
Na manhã seguinte, fui ao supermercado decidida a pôr fim àquilo tudo. Encontrei o Hugo junto às caixas, com olheiras fundas e um ar derrotado.
— Hugo, podemos falar?
Ele hesitou, mas acenou com a cabeça e seguimos para o armazém.
— Olhe… eu exagerei — comecei eu, sentindo as lágrimas a quererem saltar-me dos olhos. — Senti-me humilhada e quis vingar-me. Mas não quero que perca o emprego por minha causa.
Ele olhou-me nos olhos pela primeira vez desde aquele dia fatídico.
— Eu também fui bruto consigo. Desculpe… é que ando com a cabeça cheia de problemas em casa.
Ficámos ali uns segundos em silêncio até ele acrescentar:
— O meu pai está no hospital… e eu tenho medo de não conseguir pagar as contas.
Senti um nó na garganta. Toda aquela raiva pareceu ridícula de repente.
— Se precisar de alguma coisa… posso ajudar — murmurei.
Ele sorriu pela primeira vez em dias.
Saí do supermercado mais leve, mas também mais triste. A vingança não me trouxe satisfação; só me mostrou como somos todos frágeis quando deixamos o orgulho falar mais alto.
Quando cheguei a casa, sentei-me à janela a ver as pessoas passarem na rua estreita do bairro antigo de Lisboa onde vivi toda a vida. Pensei em quantas vezes deixei o ressentimento guiar as minhas ações e quantas oportunidades perdi para ser melhor pessoa.
Será que vale mesmo a pena alimentar rancores? Ou será que perdoar é o maior ato de coragem? Gostava de saber o que vocês fariam no meu lugar.