A vergonha da minha neta: entre o amor e o preconceito
— Avó, podias ao menos tentar vestir-te de outra maneira? — A voz da Leonor soou baixa, mas cortante como uma lâmina. Estávamos sentadas à mesa da cozinha, a chávena de chá ainda fumegava entre as minhas mãos trémulas. Olhei para ela, para os olhos castanhos que tantas vezes vi brilharem de alegria quando era pequena. Agora, evitavam os meus.
— O que queres dizer com isso, Leonor? — perguntei, tentando manter a voz firme, mesmo sentindo o coração apertado.
Ela suspirou, mexendo no telemóvel. — Não sei… As minhas amigas dizem que as avós delas são diferentes. Mais modernas. Não usam essas saias compridas, nem lenço na cabeça. E tu… tu não percebes nada de redes sociais. Nunca sabes das coisas que eu gosto.
Fiquei em silêncio. Oiço o tique-taque do relógio na parede, como se cada segundo fosse uma martelada no peito. Lembrei-me de quando ela era bebé, de como adormecia nos meus braços enquanto eu lhe cantava canções antigas. De como me pedia para fazer bolos em forma de coração e me abraçava com força quando os pais chegavam tarde do trabalho.
— Leonor… — tentei começar, mas ela já se levantava, impaciente. — Tenho de ir estudar. — E saiu, deixando-me sozinha com o cheiro do chá e uma dor surda no peito.
O resto do dia passou arrastado. O meu filho, Ricardo, chegou tarde do trabalho. Como sempre, mal teve tempo para jantar. — Mãe, não ligues. A Leonor está naquela fase difícil — disse-me, sem levantar os olhos do computador portátil. — Ela gosta muito de ti.
Mas eu sabia que não era só uma fase. Desde que a Leonor entrou no secundário, tudo mudou. Já não queria vir comigo à missa ao domingo. Já não pedia para lhe coser os botões das camisas ou para lhe ensinar a fazer arroz doce. Agora queria maquilhagem, roupa de marca e um telemóvel novo todos os anos.
Naquela noite, deitei-me cedo mas não consegui dormir. Oiço os risos abafados da Leonor no quarto ao lado, a falar com as amigas por videochamada. Sinto-me velha, ultrapassada, como se já não houvesse lugar para mim nesta casa.
No dia seguinte, decidi fazer um esforço. Fui à loja do centro comercial e comprei uma blusa nova, mais colorida do que as que costumo usar. Pedi à vizinha para me ensinar a mexer no Facebook e até tentei tirar uma selfie para enviar à Leonor.
Quando ela chegou da escola, mostrei-lhe a blusa e a fotografia no telemóvel.
— Olha, Leonor! O que achas? — perguntei, com um sorriso nervoso.
Ela olhou para mim de relance e encolheu os ombros. — Não é preciso fazeres isso só por minha causa…
— Mas eu quero aprender! Quero perceber o que te faz feliz.
Ela revirou os olhos e saiu do quarto sem dizer mais nada.
Senti as lágrimas a subir-me aos olhos. Fui até à varanda e olhei para o céu cinzento de Lisboa. Lembrei-me da minha própria avó, a Dona Maria do Carmo, sempre com o avental sujo de farinha e as mãos ásperas de tanto trabalhar na lavoura. Nunca me envergonhei dela. Pelo contrário: era o meu orgulho.
Os dias passaram e a distância entre mim e a Leonor parecia aumentar. Um sábado à tarde ouvi-a a falar ao telefone:
— Não vou levar a minha avó ao jantar da turma! Ela é… diferente. Não percebes? — A voz dela era ansiosa, quase zangada.
Senti um nó na garganta. Fui até ao quarto dela e bati à porta.
— Leonor, posso falar contigo?
Ela olhou para mim com impaciência.
— O que foi agora?
— Ouvi-te a dizer que tens vergonha de mim…
Ela ficou vermelha e baixou os olhos.
— Não é vergonha… Só acho que não ias perceber nada do jantar. As mães das minhas amigas são todas diferentes…
— Não sou tua mãe, sou tua avó — respondi, tentando sorrir apesar da dor.
Ela não respondeu. Ficou apenas ali parada, como se quisesse estar em qualquer outro lugar menos ali comigo.
Nessa noite chorei baixinho na almofada. Senti-me sozinha como nunca antes na vida. O Ricardo percebeu que algo se passava e veio sentar-se ao meu lado na sala.
— Mãe… desculpa se não tenho estado tão presente. Sei que tens feito tudo pela Leonor desde pequena. Mas agora ela está naquela idade em que tudo parece embaraçoso… até nós próprios.
— Eu só queria ser importante para ela — confessei-lhe, limpando as lágrimas com as costas da mão.
Ele abraçou-me com força.
— És importante. Mesmo que ela não saiba dizê-lo agora.
No domingo seguinte decidi ir sozinha à missa. Sentei-me no banco de trás e rezei por paciência e compreensão. No final, encontrei a Dona Amélia, vizinha do prédio ao lado.
— Então, Maria José? Está tudo bem?
Desabafei com ela sobre a Leonor e sobre como me sentia deslocada nesta nova geração.
— Olhe que é assim mesmo — disse-me ela com um sorriso triste. — Os tempos mudam e nós temos de nos adaptar… mas nunca deixar de ser quem somos.
As palavras dela ficaram-me na cabeça durante dias.
Na semana seguinte houve uma reunião na escola da Leonor sobre bullying e redes sociais. O Ricardo pediu-me para ir com ele porque não podia faltar ao trabalho. Entrei na sala cheia de pais jovens e modernos, todos agarrados aos telemóveis topo de gama.
Quando a professora falou sobre a importância dos avós na vida dos netos, senti um calor no peito. Lembrei-me dos tempos em que a Leonor me chamava de “melhor amiga” e me pedia conselhos sobre tudo.
No final da reunião, uma das mães aproximou-se de mim.
— A senhora é a avó da Leonor? Ela fala tanto de si! Diz que faz os melhores bolos do mundo.
Sorri timidamente.
— Ultimamente parece que ela tem vergonha de mim…
A mãe riu-se.
— São fases! A minha filha também já teve vergonha de mim porque não sabia usar o TikTok… Agora pede-me ajuda para tudo!
Voltei para casa com o coração mais leve. Quando cheguei, encontrei a Leonor sentada no sofá a ver televisão.
— Estiveste na escola? — perguntou ela sem olhar para mim.
— Estive sim… E sabes uma coisa? Uma mãe disse-me que tu falas muito de mim aos teus amigos.
Ela corou ligeiramente e encolheu-se no sofá.
— Às vezes falo… dos bolos e dessas coisas…
Sentei-me ao lado dela e peguei-lhe na mão.
— Leonor… Eu posso tentar aprender coisas novas contigo. Mas também gostava que aprendesses comigo algumas das coisas antigas…
Ela olhou finalmente para mim nos olhos. Vi ali um brilho tímido da menina que criei nos meus braços.
— Talvez possamos tentar… juntas?
Sorri-lhe com ternura e abracei-a com força.
Agora penso muitas vezes: será possível construir pontes entre gerações tão diferentes? Ou estaremos sempre condenados a sentir esta distância dolorosa? Gostava tanto de saber o que pensam outros avós e netos sobre isto…