A Última Vontade do António: Entre Mentiras e Silêncios
— Como assim, tudo ficou para ela? — perguntei, a voz a tremer, enquanto o advogado me olhava com uma expressão de pena mal disfarçada. O escritório cheirava a papel velho e a desilusão. O António partira há duas semanas, e eu ainda não conseguia acreditar que nunca mais ouviria o seu riso rouco pela casa. Mas nada me preparou para isto.
O Dr. Mário pigarreou, ajeitando os óculos no nariz. — Dona Teresa, o seu marido deixou instruções muito claras. Todo o património, incluindo a casa, as contas bancárias e até os quadros da sala, foram deixados à senhora Sofia Cardoso.
Sofia Cardoso. O nome ecoou na minha cabeça como um trovão. Nunca ouvira falar dela. Não era da família, não era amiga, nunca a vira nos nossos jantares ou festas. Senti o chão fugir-me dos pés. O António sempre fora reservado, mas pensei que partilhávamos tudo. Afinal, estava enganada.
Saí do escritório sem saber como consegui pôr um pé à frente do outro. A chuva caía miudinha sobre Lisboa, e eu vagueei pelas ruas sem rumo, tentando encaixar as peças de um puzzle que nunca imaginei existir. O telemóvel tocou — era a minha irmã, a Ana.
— Teresa? Já sabes alguma coisa do testamento?
— Sei — respondi, a voz embargada. — Ele deixou tudo para uma mulher chamada Sofia Cardoso.
Do outro lado, silêncio. Depois, um suspiro pesado.
— Queres que vá ter contigo?
— Não… preciso de estar sozinha.
Cheguei a casa — nossa casa — e sentei-me no sofá onde tantas vezes nos aninhámos a ver filmes antigos. Olhei para as fotografias na estante: nós no Douro, nós em Sintra, nós a rir no casamento da Ana. Tudo parecia mentira agora. Será que alguma vez fui suficiente para ele? Ou sempre houve outra?
Naquela noite não dormi. Revirei memórias como quem procura uma agulha num palheiro: os serões em silêncio, as viagens de trabalho inesperadas, as mensagens que ele dizia serem de colegas. Comecei a duvidar de tudo. Liguei ao João, amigo de infância do António.
— João, preciso perguntar-te uma coisa… Conheces alguma Sofia Cardoso?
Houve uma pausa longa demais.
— Teresa… não sei se sou a pessoa certa para te falar disto.
— Por favor! — supliquei.
— O António… ele era muito reservado. Mas ouvi falar dessa Sofia há uns anos. Diziam que era uma amiga antiga, dos tempos da faculdade. Nunca soube mais.
Desliguei com mais perguntas do que respostas. Passei os dias seguintes num torpor, evitando os olhares curiosos dos vizinhos e as mensagens de condolências que agora me pareciam hipócritas. A minha filha, Mariana, ligava todos os dias de Coimbra.
— Mãe, queres que vá aí?
— Não, filha. Preciso de perceber isto sozinha.
Finalmente tomei coragem e procurei Sofia Cardoso nas redes sociais. Havia várias, mas uma delas tinha amigos em comum com o António. O coração disparou quando vi uma fotografia dela com ele — sorridentes num café em Alfama, há três anos. Senti-me traída de novo.
Enviei-lhe uma mensagem curta: «Sou Teresa, mulher do António. Precisamos falar.»
Ela respondeu quase de imediato: «Claro. Podemos encontrar-nos amanhã?»
Marcámos no Jardim da Estrela. Cheguei cedo e sentei-me num banco à sombra das árvores. Quando ela apareceu, reconheci-a logo: elegante, cabelo castanho apanhado num coque simples, olhar triste mas firme.
— Obrigada por ter vindo — disse ela, sentando-se ao meu lado.
— Quem é você? Porque é que o meu marido lhe deixou tudo?
Ela respirou fundo antes de responder.
— Eu conheci o António há muitos anos. Fomos namorados na faculdade… Depois cada um seguiu a sua vida. Reencontrámo-nos por acaso há uns anos e tornámo-nos amigos próximos.
— Amigos? — interrompi-a, sentindo a raiva crescer.
— Sim… Só amigos. Ele sabia que eu estava doente — tenho esclerose múltipla há dez anos. O António queria garantir que eu ficava bem quando ele partisse.
Fiquei sem palavras. Olhei para ela à procura de sinais de mentira, mas vi apenas tristeza e cansaço.
— Porque é que nunca me falou de si?
Ela sorriu tristemente.
— Acho que ele tinha medo de magoar alguém… ou talvez medo de enfrentar o passado.
Voltei para casa ainda mais confusa. O António era capaz de tudo isto? De esconder uma amizade tão profunda? Deixar-me sem nada para ajudar outra pessoa? Passei dias a remoer cada palavra da Sofia, cada gesto do António nos últimos anos.
A Mariana veio finalmente passar um fim de semana comigo. Sentámo-nos à mesa da cozinha com chá quente e bolachas Maria.
— Mãe… achas mesmo que ele te traiu?
— Não sei… Talvez não no sentido tradicional. Mas escondeu-me uma parte enorme da vida dele.
Ela apertou-me a mão.
— O pai amava-te à sua maneira… Mas talvez também tenha amado outras pessoas noutras formas.
Chorei como não chorava desde o funeral. Não só pelo António, mas por mim mesma — por todas as vezes que fechei os olhos ao silêncio dele, por todas as perguntas que nunca fiz.
Os meses passaram devagar. Tive de sair da casa onde vivi vinte anos; arrendei um pequeno apartamento em Campo de Ourique. A Sofia ligou-me algumas vezes para saber como estava — nunca aceitei o dinheiro dela, apesar das ofertas generosas.
A Ana dizia-me para processar a Sofia, mas não tive forças para mais batalhas. Preferi reconstruir-me aos poucos: voltei a pintar quadros antigos, inscrevi-me numa aula de ioga e comecei a sair com amigas para cafés ao fim da tarde.
Às vezes sonho com o António: vejo-o sentado à mesa da cozinha, a ler o jornal e a sorrir-me como se nada tivesse acontecido. Acordo com saudades e raiva ao mesmo tempo.
Hoje olho para trás e pergunto-me: será possível amar alguém sem nunca o conhecer verdadeiramente? Quantos segredos cabem num casamento? E será que algum dia conseguimos perdoar quem nos magoou sem intenção?
E vocês? Já sentiram que viveram uma vida inteira ao lado de um estranho?