A Última Primavera de Maria do Carmo: Uma Segunda Chance para Amar

— Maria do Carmo, não podes continuar assim! — gritou a minha filha, Inês, batendo com força a porta da cozinha. O som ecoou pela casa antiga, misturando-se ao cheiro do café acabado de fazer e ao silêncio pesado que se instalara desde que o António partira deste mundo.

Olhei para ela, sentada à minha frente, os olhos marejados de preocupação e impaciência. Senti-me pequena, como uma menina apanhada em falta. Mas o que ela queria de mim? Que eu sorrisse, que fingisse que a solidão não me pesava nos ossos? Que eu saísse para o mundo como se tivesse vinte anos outra vez?

— Não percebes, mãe? — insistiu ela. — Tens de viver! O pai não ia querer ver-te assim.

Suspirei fundo. O António partira há cinco anos, e desde então a casa parecia maior, mais fria. Os dias arrastavam-se entre idas ao mercado, novelas e as visitas semanais dos netos. Às vezes invejava as vizinhas que ainda tinham maridos ou que se juntavam para jogar às cartas. Eu ficava à janela, a ver o tempo passar.

Mas naquele dia, algo mudou. Talvez tenha sido o tom da Inês, ou talvez o cansaço de me sentir invisível. Decidi aceitar o convite da minha vizinha Rosa para ir ao baile dos idosos na Junta de Freguesia. Vesti o meu vestido azul — aquele que o António sempre dizia que me ficava bem — e penteei o cabelo com mais cuidado do que o habitual.

Quando entrei no salão, senti-me deslocada. As luzes fluorescentes, a música antiga, os casais a dançar devagarinho… Quase voltei para casa. Mas então vi-o: Manuel, o viúvo do terceiro andar, sentado sozinho com um copo de vinho na mão. Trocámos um olhar tímido.

— Maria do Carmo? — perguntou ele, sorrindo.

— Sim… Manuel, não é?

Conversámos durante horas. Falámos dos filhos, das saudades dos nossos companheiros, das dores nas costas e das alegrias pequenas — como o cheiro do pão quente ou o riso dos netos. Senti-me viva outra vez.

Nos dias seguintes, Manuel começou a aparecer mais vezes. Trazia-me flores do jardim dele, ajudava-me com as compras e fazia-me rir com as suas histórias de juventude em Trás-os-Montes. A Inês não gostou nada quando soube.

— Mãe, tens de ter cuidado! — avisou ela. — Não conheces bem esse homem.

— Inês, filha… Tenho setenta e três anos. Achas mesmo que alguém quer aproveitar-se de mim?

Ela não respondeu. Mas percebi o medo dela: medo de me ver magoada outra vez, medo de perder o pouco que restava da família.

Os meus netos acharam graça à ideia de eu ter “um namorado”. O João até me perguntou se ia casar outra vez. Ri-me tanto que chorei.

Mas nem tudo era fácil. Os meus irmãos começaram a comentar à boca pequena:

— A Maria do Carmo anda feita parva por causa de um homem… — ouvi a minha cunhada dizer na mercearia.

Senti vergonha e raiva. Porque é que uma mulher da minha idade não pode amar? Porque é que esperam que eu me conforme com a solidão?

Uma tarde, Manuel convidou-me para ir ao Porto ver o mar. Hesitei. Era longe, era estranho sair assim… Mas fui. Sentámo-nos num banco da Foz e ele pegou na minha mão.

— Maria do Carmo, nunca pensei sentir isto outra vez — disse ele, com os olhos húmidos. — Achas que somos tolos?

Olhei para ele e vi ali um homem tão só quanto eu, mas cheio de vontade de viver.

— Se somos tolos, então sejamos juntos — respondi-lhe.

A partir desse dia, começámos a viver pequenos momentos de felicidade: um almoço no parque, um passeio à beira-rio, tardes a ouvir fado na rádio antiga dele. A solidão foi-se afastando devagarinho.

Claro que houve discussões. A Inês continuava desconfiada; os meus irmãos criticavam-me; até algumas amigas se afastaram. Mas também ganhei novas amizades — outras mulheres como eu, que encontraram coragem para recomeçar.

Um dia, durante um jantar em minha casa, a Inês explodiu:

— Mãe! Não percebes que estás a pôr tudo em risco? E se ele só quer a tua reforma? E se te magoa?

Levantei-me devagar e olhei-a nos olhos:

— Filha… Passei a vida inteira a cuidar dos outros. Do teu pai, de ti, dos teus filhos… Agora quero cuidar de mim. Quero ser feliz enquanto posso.

Ela chorou nesse dia. Abraçámo-nos muito tempo. Acho que finalmente percebeu.

O tempo passou depressa depois disso. Manuel ficou doente no inverno passado; temi perdê-lo como perdi o António. Passei noites em claro ao lado dele no hospital, rezando para que ficasse comigo mais um pouco.

Ele recuperou devagarinho. Quando voltou para casa, trouxe-me uma rosa branca e disse:

— Obrigado por me dares uma segunda primavera.

Hoje olho para trás e vejo quantas vezes deixei o medo vencer-me: medo do ridículo, medo da solidão, medo do futuro. Mas aprendi que nunca é tarde para recomeçar.

Agora pergunto-me: quantas pessoas vivem presas ao passado por medo do que os outros vão dizer? Quantas oportunidades de felicidade deixamos escapar porque achamos que já não temos idade para sonhar?

E vocês? Já tiveram coragem de recomeçar quando toda a gente dizia que era tarde demais?