A Última Lição de Dona Leonor: Vingança à Beira do Lago

— Não pode estar a falar a sério, Sr. Álvaro! — gritei, sentindo o chão fugir-me dos pés. O velho administrador do condomínio nem me olhou nos olhos. — Recebi ordens, Dona Leonor. O terreno já não lhe pertence. Tem de sair até ao fim da semana.

A minha voz tremeu, mas não de medo. Era raiva. Raiva e incredulidade. Vinte anos a viver naquela cabana à beira do lago, vinte anos a ensinar as crianças da aldeia, a cuidar do jardim, a partilhar bolos com os vizinhos… E agora isto? Olhei para o papel amarelado que ele me estendia. Uma ordem de despejo, assinada pelo novo proprietário do terreno: António Figueiredo.

António. O meu vizinho de sempre, o rapaz que vi crescer, a quem dei explicações de matemática quando era miúdo. O mesmo António que, há dois meses, me trouxe um cabaz de laranjas e me disse: “Qualquer coisa que precise, Dona Leonor, sabe que pode contar comigo.”

Sentei-me no banco do alpendre, as mãos a tremer. O lago brilhava ao longe, indiferente à minha dor. As gaivotas gritavam sobre a água, como se anunciassem o fim de uma era. Lembrei-me de quando comprei aquela cabana com as economias de uma vida inteira de professora primária. Não era grande coisa — duas divisões, paredes de madeira, um telhado que pingava no inverno — mas era o meu lar.

Naquela noite não dormi. A cabeça fervilhava de perguntas e mágoas. Como é que António pôde fazer-me isto? Porquê agora? O que teria mudado?

No dia seguinte, fui bater-lhe à porta. Ele abriu com um sorriso nervoso.

— Dona Leonor…

— Não me venha com salamaleques, António! Quero saber porquê. Porquê agora? Porquê eu?

Ele desviou o olhar.

— Não é nada pessoal… O meu irmão precisa do terreno para construir uma casa maior. A minha mãe está doente e vai viver com ele…

— E eu? Onde fico eu nesta história? — perguntei, sentindo as lágrimas ameaçarem cair.

Ele encolheu os ombros.

— Eu tentei avisar… Mas o contrato estava no nome do meu pai. Quando ele morreu, tudo passou para mim e para o meu irmão. Não posso fazer nada.

Saí dali sem dizer mais nada. A aldeia parecia mais pequena naquele dia, as pessoas olhavam para mim com pena ou evitavam-me o olhar. Só a D. Teresa, minha amiga de infância, teve coragem de me abraçar.

— Isto não está certo, Leonor… Mas sabes como são estas coisas de família e heranças.

Eu sabia. Sabia demasiado bem. Já tinha visto famílias destruídas por menos.

Nos dias seguintes comecei a empacotar as minhas coisas. Cada fotografia, cada livro, cada chávena tinha uma história ligada àquela casa. Mas quanto mais empacotava, mais crescia dentro de mim uma vontade feroz de não deixar isto assim.

Foi então que ouvi falar dos rumores: António andava a dizer na taberna que eu nunca pagara renda suficiente, que era uma “velha agarrada ao passado”, que só estava ali por caridade da família dele. Senti o sangue ferver-me nas veias.

Naquela noite sentei-me à mesa da cozinha e escrevi uma carta aberta à aldeia. Contei tudo: como tinha comprado a cabana ao pai dele por vinte mil euros em 2004; como sempre paguei as taxas; como ajudei a organizar festas e angariações para a escola local; como António me prometera que nada mudaria depois da morte do pai.

No dia seguinte, colei cópias da carta em todos os postes da aldeia e entreguei uma ao presidente da junta. A resposta não tardou: começaram a chegar-me mensagens de apoio, cestos de fruta à porta, convites para almoçar em casa dos vizinhos.

Mas António não gostou. Veio ter comigo furioso.

— Está a tentar virar a aldeia contra mim?

— Estou a tentar defender-me! — respondi-lhe sem medo. — Não sou invisível nem descartável.

Ele ameaçou processar-me por difamação. Eu ri-me na cara dele pela primeira vez em anos.

A partir daí começou uma guerra fria: ele mandava cortar a luz da cabana; eu ligava para a EDP e reclamava; ele tentava impedir-me de usar o poço; eu chamava a GNR e mostrava os meus papéis antigos.

A aldeia dividiu-se: uns do lado dele — afinal era um dos poucos jovens que ainda ali viviam — outros do meu lado, lembrando-se das festas de Natal na escola e dos bolos de laranja ao domingo.

No meio disto tudo, recebi uma carta da filha do António, Mariana — uma miúda doce que sempre me tratou como avó postiça:

“Querida Dona Leonor,
Desculpe pelo meu pai. Ele não é mau homem, só está perdido com tudo isto da avó doente e do trabalho novo em Lisboa. Eu gostava tanto de ir aí lanchar consigo outra vez.”

Chorei ao ler aquelas palavras. Percebi que esta guerra não era só minha ou dele — era um reflexo das feridas que todos carregamos quando nos sentimos ameaçados ou esquecidos.

No dia do despejo final, toda a aldeia apareceu à porta da cabana: uns para ajudar a carregar caixas, outros só para ver o fim do escândalo. António não apareceu. Dizem que ficou em casa da mãe, envergonhado.

Quando fechei a porta pela última vez, deixei um bilhete na mesa:

“Esta casa foi feita de memórias e respeito. Espero que quem aqui viver saiba dar-lhe valor.”

Instalei-me provisoriamente em casa da Teresa. Os dias passaram devagar, mas nunca deixei de lutar: escrevi cartas aos jornais locais, fui à televisão contar a minha história, organizei abaixo-assinados para proteger os direitos dos idosos na aldeia.

Um mês depois recebi uma chamada inesperada: o irmão do António queria falar comigo.

— Dona Leonor… Sei que isto foi um erro. A minha mãe sente-se mal com tudo isto. Queremos propor-lhe voltar à cabana como nossa convidada — sem renda nem obrigações.

Pensei durante muito tempo antes de responder.

— Agradeço o gesto… Mas aprendi que o nosso valor não depende da caridade dos outros. Vou encontrar o meu próprio caminho.

Hoje vivo numa pequena casa arrendada na vila vizinha. Não é o lago, mas tem um jardim onde plantei as primeiras roseiras da minha nova vida. Recebo visitas dos antigos alunos e continuo a lutar pelos direitos dos mais velhos.

Às vezes pergunto-me: quantas Leonores existem por aí, invisíveis até serem empurradas para fora das suas casas? E vocês? O que fariam se vos tirassem tudo aquilo por que lutaram uma vida inteira?