A Troca de Casas: Entre o Amor e a Desconfiança
— Maria, não achas que já está na altura de pensarmos no futuro? — A voz de Dona Lurdes ecoava pela sala, carregada de uma doçura forçada que eu já conhecia demasiado bem. — O Rui é filho único, sabes bem. E este apartamento, tão pequeno, não é lugar para criarem uma família.
Senti o estômago apertar-se. O Rui estava sentado ao meu lado, a olhar para o chão, como se as linhas do soalho fossem subitamente fascinantes. Eu sabia que aquela conversa não era inocente. Desde que casámos, Dona Lurdes nunca escondeu o desagrado pelo facto de termos comprado um T2 modesto em Benfica, em vez de aceitarmos viver com ela em Odivelas.
— O que está a sugerir, Dona Lurdes? — perguntei, tentando manter a voz firme.
Ela sorriu, mas os olhos dela não sorriam. — Uma troca, querida. Eu fico com o vosso apartamento — é mais perto do centro, mais prático para mim — e vocês vêm para a minha casa. É maior, tem espaço para crianças. Mas claro, para ser tudo legal, o apartamento teria de ficar em meu nome.
O silêncio caiu pesado. O Rui tossiu, desconfortável. — Mãe, não sei se…
— Rui, pensa! — interrompeu ela. — Eu já não sou nova. Preciso de estar perto dos hospitais, dos transportes. E vocês precisam de espaço. É o melhor para todos.
O meu coração batia descompassado. Lembrei-me das histórias que ouvira sobre a família do Rui: primos afastados que perderam casas, tios que deixaram de falar uns com os outros por causa de heranças e propriedades. Sempre temi que um dia seria a minha vez.
— Maria, confia em mim — sussurrou o Rui, finalmente olhando-me nos olhos. — A minha mãe só quer ajudar.
Mas eu via o brilho de ansiedade nos olhos dele. Sabia que ele também temia o pior, mas era incapaz de enfrentar a mãe.
Naquela noite, não dormi. Fiquei a olhar para o teto, a pensar em tudo o que podia perder. O apartamento era pequeno, sim, mas era nosso. Cada parede tinha uma história: a mancha de vinho da nossa primeira discussão, o prego torto onde pendurámos o quadro da lua-de-mel, o cheiro a café nas manhãs de domingo. E agora, tudo isso podia desaparecer com uma assinatura.
No dia seguinte, fui trabalhar como um autómato. No escritório, a minha colega Inês percebeu logo que algo não estava bem.
— O que se passa, Maria? Pareces um fantasma.
Contei-lhe tudo, baixinho, como se as paredes pudessem ouvir.
— Não faças isso — disse ela, sem hesitar. — A minha tia perdeu tudo por causa de uma história parecida. A família do marido dela prometeu mundos e fundos… e depois ficou sem nada.
As palavras dela ecoaram em mim durante dias. O Rui tentava acalmar-me, mas eu via-o cada vez mais nervoso. Dona Lurdes ligava todos os dias, insistente, perguntando quando íamos tratar dos papéis.
Uma noite, depois do jantar, explodi:
— Rui, não posso fazer isto! Não posso entregar a minha segurança assim, só porque a tua mãe quer! E se ela mudar de ideias? E se um dia ficarmos sem casa?
Ele ficou em silêncio, os olhos cheios de lágrimas contidas.
— Maria, eu amo-te. Mas não consigo dizer não à minha mãe. Ela sempre foi assim… ou é à maneira dela, ou não é.
— E eu? — gritei. — E nós? Não contas?
Ele saiu de casa nessa noite. Fiquei sozinha, a chorar no sofá, sentindo-me traída por todos, até por mim própria.
Os dias seguintes foram um tormento. No trabalho, mal conseguia concentrar-me. Em casa, o silêncio era ensurdecedor. Dona Lurdes continuava a ligar, agora mais fria, quase ameaçadora.
— Maria, não compliques. Se não confias em mim, como vais confiar no Rui? — disse ela numa chamada.
Senti-me encurralada. O Rui voltou para casa ao fim de uma semana, com o ar derrotado.
— A minha mãe disse que se não aceitarmos, vai cortar relações connosco — murmurou ele, sem me olhar nos olhos.
— Então é isso? Ou faço o que ela quer, ou perco tudo?
Ele encolheu os ombros. — Não sei o que fazer.
Passei noites a pensar em todas as possibilidades. Falei com um advogado, às escondidas. Ele explicou-me que, legalmente, depois de passar o apartamento para o nome dela, nada me garantia que ela cumprisse a parte dela do acordo.
— Pode até pôr-vos na rua — disse ele, sem rodeios.
A decisão tornou-se clara para mim, mas dolorosa. Chamei o Rui e sentei-o à mesa da cozinha.
— Rui, eu amo-te. Mas não vou entregar o meu apartamento à tua mãe. Se quiseres ir viver com ela, vai. Mas eu fico aqui.
Ele chorou. Eu chorei. Pela primeira vez em anos, senti-me forte e ao mesmo tempo completamente sozinha.
No dia seguinte, Dona Lurdes apareceu à porta, furiosa.
— Ingrata! Depois de tudo o que fiz por ti! — gritou ela, batendo com a bengala no chão.
— O que fez por mim foi tentar tirar-me tudo — respondi, com a voz a tremer.
Ela virou costas e foi-se embora, deixando um silêncio pesado atrás de si.
O Rui ficou comigo, mas a relação nunca mais foi a mesma. Ele tornou-se distante, amargo. Eu tentei recuperar o que tínhamos, mas sentia sempre a sombra da mãe dele entre nós.
Meses depois, ele fez as malas e saiu de casa. Disse que precisava de tempo para pensar, para perceber quem era sem a mãe a controlar-lhe a vida.
Fiquei sozinha no apartamento, rodeada pelas memórias do que fomos e do que podíamos ter sido. Às vezes dou por mim a olhar para a porta, à espera que ele volte. Outras vezes, sinto um alívio estranho por finalmente poder respirar sem medo de perder tudo.
Pergunto-me muitas vezes: valeu a pena escolher a minha segurança em vez do amor? Ou será que o verdadeiro amor nunca me pediria para abdicar de mim própria? E vocês, o que fariam no meu lugar?