A traição que rasgou a minha família: A história de Maria de Setúbal
— Mãe, não vás agora… — sussurrou o Tiago, com os olhos marejados, enquanto eu fechava a mala na sala pequena do nosso apartamento em Setúbal. O relógio marcava cinco da manhã e o silêncio era cortado apenas pelo som abafado do choro do meu filho mais novo. O João, mais velho, mantinha-se calado, encostado à ombreira da porta, braços cruzados, olhar perdido no chão. O António, meu marido, não estava ali. Tinha dito que não conseguia despedir-se outra vez.
A decisão de emigrar para França não foi fácil. Mas depois de meses a contar moedas para pagar a renda e a ver o António perder mais um trabalho nas docas, achei que era a única saída. Prometi-lhes que seria por pouco tempo, só até conseguirmos respirar sem medo das contas. Acreditei mesmo nisso.
Os primeiros meses em Paris foram um inferno de saudades e solidão. Trabalhava como empregada de limpeza num hotel, limpava quartos até as costas gritarem por descanso. À noite, ligava para casa. O António raramente atendia. “Está cansado”, dizia o João. “O pai tem andado ocupado”, justificava o Tiago. Eu queria acreditar.
No Natal desse ano, mandei dinheiro para comprarem um bacalhau especial e prendas para os miúdos. Fiquei sozinha no quarto alugado, com uma ceia improvisada e lágrimas a escorrerem-me pela cara. Liguei para casa. Ninguém atendeu.
Os meses passaram. As chamadas tornaram-se mais curtas, as respostas mais vagas. O António começou a evitar as videochamadas. “A internet está má”, dizia ele. Os rapazes mudaram também — o João tornou-se mais fechado, o Tiago mais distante.
Foi numa manhã fria de março que tudo mudou. Recebi uma mensagem da minha vizinha, a Dona Rosa: “Maria, desculpe meter-me, mas preciso falar consigo.” Liguei-lhe de imediato. Do outro lado da linha, ouvi hesitação e depois um sussurro: “O António tem trazido uma mulher lá a casa… Não queria acreditar sem lhe dizer primeiro.” Senti o chão fugir-me dos pés.
Tentei ligar ao António. Nada. Liguei ao João — atendeu ao fim de vários toques.
— João, preciso falar contigo agora.
— Mãe… agora não dá…
— João! Diz-me a verdade! O que se passa em casa?
Silêncio.
— O pai… ele… — ouvi o choro contido do meu filho — Ele está com outra pessoa.
O mundo desabou sobre mim naquele instante. Senti-me traída não só pelo António, mas pelos meus próprios filhos que esconderam tudo de mim. Como puderam? Fiz tudo por eles! Trabalhei até à exaustão para lhes dar uma vida melhor!
Naquela noite não dormi. Passei horas a rever cada conversa, cada silêncio estranho, cada desculpa esfarrapada dos últimos meses. Lembrei-me do Tiago a pedir-me para não ir embora — será que já sabia? Senti raiva, tristeza e uma solidão tão funda que me faltava o ar.
No dia seguinte pedi folga no trabalho e comprei um bilhete de autocarro para Setúbal. A viagem foi longa e pesada; cada quilómetro parecia um peso no peito.
Cheguei a casa sem avisar. Abri a porta com as mãos a tremer. O cheiro familiar misturava-se com um perfume estranho. No sofá estava uma manta cor-de-rosa que nunca tinha visto antes.
O António apareceu na sala, surpreendido:
— Maria?! O que estás aqui a fazer?
— Vim ver a minha família — respondi com voz fria.
Ele ficou calado, olhos baixos.
O Tiago entrou na sala, pálido.
— Mãe… desculpa…
O João apareceu atrás dele, olhos vermelhos.
— Porque é que ninguém me disse nada? — gritei, incapaz de conter as lágrimas.
O António tentou aproximar-se:
— Maria… as coisas mudaram…
— Mudaram?! Eu matei-me a trabalhar por vocês! E tu… tu…
Ele não respondeu. O silêncio era ensurdecedor.
Fugi dali para o quarto dos miúdos e fechei-me lá dentro. Ouvi-os discutir baixinho na sala. Sentei-me na cama do Tiago e abracei a almofada dele como se pudesse voltar atrás no tempo.
Naquela noite ninguém dormiu. O António saiu de casa antes do amanhecer. Os rapazes ficaram comigo, mas o ambiente era pesado, quase irrespirável.
Nos dias seguintes tentei perceber como reconstruir alguma coisa dos cacos que restavam da minha família. O Tiago chorava muito; dizia que tinha medo de me perder também. O João culpava-se por não me ter contado antes.
A mulher do António — a tal Ana — começou a aparecer à porta para falar com ele. Os vizinhos cochichavam nos corredores do prédio; sentia os olhares de pena e julgamento sempre que saía para ir ao supermercado.
Tive vontade de voltar para França e esquecer tudo aquilo. Mas olhava para os meus filhos e via neles o reflexo da minha dor e da minha luta. Não podia abandoná-los agora.
Comecei a procurar trabalho em Setúbal outra vez. Arranjei umas limpezas em casas de senhoras idosas e tentei manter alguma rotina para os rapazes. O António vinha buscar as coisas dele aos poucos; nunca mais dormiu lá em casa.
Uma noite sentei-me com os meus filhos à mesa da cozinha:
— Sei que estão magoados comigo… mas eu também estou magoada convosco. Precisamos falar sobre isto.
O Tiago chorou; o João pediu desculpa entre soluços.
— Tínhamos medo de te magoar ainda mais — disse ele — Não sabíamos o que fazer…
Abracei-os como se fossem ainda bebés e chorei com eles até não haver mais lágrimas.
Os meses passaram devagarinho. Fomos aprendendo a viver só os três; aprendemos a confiar devagarinho outra vez. O António casou-se com a Ana pouco tempo depois; os rapazes foram ao casamento contrariados, eu fiquei em casa sozinha a tentar não pensar no passado.
Hoje olho para trás e pergunto-me: teria feito tudo diferente se soubesse o que ia acontecer? Teria ficado em Setúbal mesmo sem dinheiro? Ou teria confiado menos nas pessoas que amava?
Às vezes pergunto-me: será possível perdoar uma traição destas? E vocês — já sentiram esta dor? Como se volta a confiar depois de tudo isto?