À Sombra do Meu Pai: O Filho do Líder Sindical de Contagem
— Não me venha com mais desculpas, Rafael! — a voz da minha mãe ecoou pela cozinha, cortando o silêncio da manhã como uma navalha. — O seu pai não morreu para você desperdiçar a vida assim!
Eu estava parado diante dela, com as mãos trêmulas segurando uma caneca de café frio. O cheiro forte do café queimado misturava-se ao perfume barato que minha mãe usava desde que me lembro. O relógio na parede marcava 6h45, mas parecia que o tempo tinha parado desde aquela noite fatídica em que meu pai, Jorge Almeida, caiu morto no portão de casa, vítima de um ataque cardíaco — ou pelo menos foi o que disseram.
Naquela manhã, tudo parecia mais pesado. O luto ainda era recente, mas o que realmente me sufocava era a sensação de que havia algo errado, algo não dito. Meu pai era mais do que um simples operário: era o presidente do sindicato dos metalúrgicos de Contagem, amado por muitos e odiado por outros tantos. Cresci ouvindo histórias sobre sua coragem nas greves, sobre como enfrentou patrões e políticos corruptos. Mas também cresci ouvindo sussurros — conversas abafadas entre minha mãe e minha tia Lúcia, olhares desconfiados dos vizinhos, telefonemas anônimos tarde da noite.
— Você não entende, mãe — respondi, tentando controlar a voz. — Eu só preciso de tempo. Tudo mudou tão rápido…
Ela me olhou com aqueles olhos fundos e cansados, como se quisesse me dizer algo, mas não tivesse coragem. — Tempo? O tempo não espera ninguém, Rafael. Seu pai queria que você fosse alguém na vida. Não um… — ela hesitou, procurando a palavra certa — …um fantasma dentro desta casa.
Saí batendo a porta, sentindo o peso da culpa e da raiva misturados no peito. Caminhei pelas ruas do bairro Industrial, onde cada esquina carregava uma lembrança da infância: o campo de terra onde jogávamos bola, o bar do Seu Zé onde meu pai discutia política com os amigos, a fábrica da Fiat ao longe, soltando fumaça cinza no céu já poluído.
No caminho para o sindicato, encontrei Pedro, um dos antigos companheiros do meu pai. Ele me cumprimentou com um aperto de mão forte demais.
— Rafael! Que bom te ver por aqui. Precisamos conversar.
— Sobre o quê?
Ele olhou ao redor antes de responder, baixando a voz:
— Tem coisa estranha acontecendo desde que seu pai morreu. Documentos sumiram da sala dele. E ontem à noite vi o diretor financeiro saindo às pressas com uma pasta cheia de papéis.
Meu estômago revirou. Lembrei-me das conversas abafadas em casa e dos telefonemas misteriosos. Será que meu pai realmente morreu de causas naturais?
— Você acha que foi… — hesitei — …assassinato?
Pedro balançou a cabeça devagar:
— Não sei. Mas seu pai estava mexendo com gente perigosa. Ele descobriu um desvio grande de dinheiro no sindicato. E ameaçou denunciar.
A notícia caiu sobre mim como um raio. Meu pai sempre foi íntegro — pelo menos era o que eu queria acreditar. Mas e se ele tivesse se envolvido demais? E se alguém quisesse calá-lo?
Voltei para casa atordoado. Minha mãe estava sentada à mesa, chorando baixinho. Sentei-me ao lado dela e segurei sua mão.
— Mãe… tem alguma coisa que você não me contou sobre o papai?
Ela hesitou por um instante antes de responder:
— Seu pai estava com medo nas últimas semanas. Recebia ameaças pelo telefone. Eu pedi para ele parar com essa história de denúncia, mas ele era teimoso demais.
— Por que não me contou antes?
Ela enxugou as lágrimas com o avental:
— Eu queria te proteger. Você já sofreu tanto…
Naquela noite, não consegui dormir. Fiquei revirando as gavetas do escritório do meu pai, procurando qualquer pista. Encontrei um caderno velho escondido atrás dos livros de direito trabalhista. Nele havia anotações sobre reuniões secretas, nomes de pessoas influentes na cidade e uma lista de pagamentos suspeitos.
No dia seguinte, fui até a fábrica onde meu pai trabalhava antes de ser eleito presidente do sindicato. Conversei com Dona Cida, a copeira que sempre foi amiga da família.
— Seu pai era um homem bom, Rafael. Mas mexeu com gente grande demais. Eu ouvi dizer que o vice-presidente do sindicato estava envolvido nesse desvio de dinheiro.
Voltei para casa decidido a confrontar o tal vice-presidente, Antônio Carlos. Marquei um encontro com ele no bar do Seu Zé.
— Rafael! Que surpresa te ver aqui — disse ele, sorrindo falsamente.
— Quero saber a verdade sobre meu pai. O que você sabe sobre os desvios no sindicato?
Ele ficou pálido por um instante antes de recuperar a compostura:
— Não sei do que está falando.
— Não minta pra mim! Eu tenho provas — menti, tentando parecer mais confiante do que realmente estava.
Ele se levantou bruscamente:
— Olha aqui, garoto… Melhor você esquecer essa história se quiser continuar vivo.
Saí do bar tremendo dos pés à cabeça. Pela primeira vez senti medo real — não só por mim, mas pela minha mãe também.
Naquela noite, recebi uma ligação anônima:
— Se continuar fuçando onde não deve, vai acabar igual ao seu pai.
Desliguei o telefone com as mãos suando frio. Corri até o quarto da minha mãe e contei tudo a ela.
— Temos que sair daqui — ela disse, desesperada.
Mas eu sabia que fugir não resolveria nada. Passei os dias seguintes tentando juntar mais provas: conversei com antigos colegas do meu pai, pesquisei documentos antigos do sindicato e até tentei falar com um jornalista local, Marcelo Braga.
Marcelo foi o único que me ouviu sem me tratar como um garoto assustado.
— Se você tiver provas concretas, eu publico a história — prometeu ele.
Juntos conseguimos reunir documentos suficientes para incriminar Antônio Carlos e outros membros corruptos do sindicato. Mas antes que pudéssemos entregar tudo à polícia, minha mãe desapareceu.
O desespero tomou conta de mim. Passei dias procurando por ela: hospitais, delegacias, casas de amigos… Nada. Até que recebi uma carta anônima dizendo para eu desistir da investigação se quisesse ver minha mãe viva novamente.
Fui até Pedro em busca de ajuda.
— Eles estão jogando sujo demais — disse ele. — Mas não podemos recuar agora.
Com a ajuda dele e de Marcelo Braga, conseguimos armar uma emboscada: marcamos um falso encontro para entregar os documentos em troca da liberdade da minha mãe. A polícia foi avisada e ficou à espreita.
Na noite marcada, fui até o galpão abandonado indicado na carta. Meu coração batia tão forte que parecia querer saltar pela boca. Vi minha mãe amarrada a uma cadeira e Antônio Carlos ao lado dela, sorrindo como um demônio.
— Você é corajoso igual ao seu pai — disse ele. — Mas coragem demais mata.
Antes que pudesse reagir, a polícia invadiu o galpão e prendeu todos os envolvidos. Corri até minha mãe e a abracei como nunca antes.
Os meses seguintes foram difíceis: depoimentos na delegacia, ameaças veladas e noites sem dormir. Mas finalmente a verdade veio à tona: meu pai tinha sido assassinado por ordem dos próprios colegas do sindicato que ele tanto defendeu.
A cidade ficou em choque; manchetes nos jornais estampavam nosso sobrenome todos os dias. Minha mãe nunca mais foi a mesma depois disso — envelheceu dez anos em poucos meses. E eu? Carrego até hoje as cicatrizes dessa luta.
Às vezes me pergunto se valeu a pena ter enfrentado tudo isso em nome da verdade. Será que meu pai teria feito o mesmo por mim? Ou será que há segredos demais em cada família para serem desenterrados?
E vocês? Até onde iriam para defender a memória de quem amam?