À Sombra do Desprezo: Uma Filha à Procura da Sua Voz
— Não chores agora, Inês. Já chega de dramas — disse o meu pai, António, com aquela voz seca que me cortava mais do que qualquer silêncio. Eu estava sentada à mesa da cozinha, as mãos apertadas em torno de uma caneca de chá frio, tentando engolir as lágrimas que ameaçavam cair. A casa parecia maior desde que a mãe morreu, como se cada parede tivesse recuado para me deixar ainda mais sozinha.
Mariana entrou na cozinha com o cabelo loiro apanhado num rabo-de-cavalo perfeito, a mochila pendurada num ombro. — Pai, posso ir ao cinema com a Sofia? — perguntou ela, sem sequer olhar para mim. Ele sorriu-lhe, aquele sorriso que eu já não via há meses. — Claro, filha. Mas volta cedo.
Eu queria gritar. Queria perguntar porque é que Mariana podia tudo e eu nada. Porque é que ela era sempre a escolhida, mesmo sendo filha de outra mulher, mesmo tendo chegado à nossa vida só há três anos. Mas calei-me. Engoli o nó na garganta e levantei-me devagar.
No corredor, as fotografias antigas olhavam para mim: eu e a mãe na praia da Nazaré, rimos com os pés enterrados na areia; eu e o pai no jardim, antes de tudo mudar. Agora, só Mariana aparecia nas fotos novas. Eu era um fantasma na minha própria casa.
Na escola, as coisas não eram melhores. Os colegas cochichavam sobre a minha tristeza, sobre como eu tinha mudado desde que a mãe morreu. A professora de Português chamou-me ao fim da aula:
— Inês, tens estado muito calada. Se precisares de falar…
— Estou bem — menti, fugindo do olhar dela.
À noite, ouvia o pai e Mariana a rir na sala enquanto eu me fechava no quarto. Pegava no diário da mãe — o único pedaço dela que me restava — e lia as palavras escritas com letra redonda: “Nunca deixes ninguém calar o teu coração.” Mas como é que eu podia falar se ninguém queria ouvir?
No sábado seguinte, era o meu aniversário. Não houve bolo nem festa. O pai esqueceu-se. Mariana saiu cedo para ir às compras com as amigas. Fiquei sozinha com o silêncio e a saudade.
Ao fim da tarde, bati à porta do escritório do pai. Ele estava ao telefone, mas fiz-lhe sinal de que precisava de falar.
— O que foi agora? — perguntou ele, impaciente.
— Hoje faço dezasseis anos — disse num fio de voz.
Ele olhou para mim como se só então se lembrasse. — Ah… parabéns, Inês. Depois falamos disso.
Fechei a porta devagar e fui até ao jardim. Sentei-me no banco onde costumava ver a mãe cuidar das flores. Senti uma raiva crescer dentro de mim — uma raiva quente e amarga.
Quando Mariana voltou, trazia sacos cheios de roupa nova.
— Olha só este casaco! O pai comprou-mo — disse ela, exibindo-o como um troféu.
— Parabéns pelo casaco — respondi, incapaz de esconder o sarcasmo.
Ela encolheu os ombros. — Não tens de ser sempre tão amarga.
— E tu não tens de ser sempre tão perfeita — atirei-lhe.
Ela ficou séria por um momento. — Sabes que não é fácil para mim também…
— Não? Tens tudo o que queres! O pai só tem olhos para ti!
— Isso não é verdade…
— É sim! Desde que chegaste que deixei de existir nesta casa!
Mariana mordeu o lábio inferior e saiu do quarto sem dizer mais nada. Fiquei ali, sozinha com a minha dor.
Nessa noite, não consegui dormir. Levantei-me e fui até à sala. O pai estava sentado no sofá, a ver televisão com o som baixo.
— Pai… — comecei.
Ele suspirou. — O que foi agora?
— Sentes saudades da mãe?
Ele ficou em silêncio durante tanto tempo que pensei que não ia responder.
— Sinto… mas a vida continua, Inês. Tens de aprender a seguir em frente.
— E esquecer tudo? Esquecer quem éramos?
Ele olhou-me finalmente nos olhos. — Não é esquecer… é sobreviver.
— Eu não quero só sobreviver! Quero viver! Quero ser ouvida!
Ele abanou a cabeça e voltou-se para a televisão.
No dia seguinte, decidi faltar às aulas. Fui até à praia da Nazaré sozinha, levei o diário da mãe comigo. Sentei-me na areia fria e escrevi uma carta para ela:
“Mãe,
Sinto tanto a tua falta. Aqui ninguém me vê nem me ouve. O pai esqueceu-se do meu aniversário. A Mariana tem tudo o que eu queria: atenção, carinho… sinto-me invisível nesta casa que já não é minha. Como é que faço para encontrar a minha voz?”
Chorei ali até não ter mais lágrimas. Quando voltei para casa ao fim do dia, encontrei Mariana sentada na minha cama.
— Estava preocupada contigo — disse ela baixinho.
— Não precisavas — respondi seca.
Ela estendeu-me um envelope branco.
— Isto chegou hoje pelo correio… é para ti.
Abri o envelope com mãos trémulas: era uma carta da avó materna, que vivia em Viseu e com quem quase não falava desde o funeral da mãe.
“Querida Inês,
Sei que as coisas não têm sido fáceis para ti. Se precisares de fugir um pouco dessa casa, as portas estão sempre abertas aqui em Viseu. Nunca te esqueças: és amada e tens direito à tua voz.”
Senti um calor estranho no peito — esperança misturada com medo.
Mariana olhou para mim com olhos sinceros:
— Desculpa se te magoei… Eu também me sinto perdida aqui às vezes.
Pela primeira vez em muito tempo, abracei-a. Chorámos as duas em silêncio.
Na manhã seguinte, fiz as malas sem dizer nada ao pai. Deixei-lhe uma carta:
“Pai,
Preciso de encontrar quem sou fora desta casa onde já não me reconheço. Vou para Viseu ficar com a avó durante uns tempos. Espero que um dia possas ouvir-me como mereço ser ouvida.”
Quando cheguei à estação de comboios, senti medo mas também alívio. Pela primeira vez em muito tempo, sentia-me dona do meu destino.
Agora escrevo estas palavras do quarto da avó, rodeada pelo cheiro das flores do campo e pelo silêncio acolhedor desta casa antiga. Ainda dói pensar no pai e na Mariana, mas aqui começo finalmente a ouvir a minha própria voz ecoar dentro de mim.
Será que algum dia vou conseguir perdoar o meu pai? Será possível reconstruir uma família quando todos os pedaços parecem partidos? E vocês… já se sentiram invisíveis dentro da vossa própria casa?