À Sombra do Desprezo: A Luta de Uma Filha por Voz e Identidade

— Não me venhas com sonhos, Matilde. Neste mundo, quem sonha acaba a varrer ruas — a voz do meu pai ecoou pela cozinha, fria como o mármore da bancada onde eu apoiava as mãos trémulas. O cheiro do café queimado misturava-se com o da chuva que batia nas janelas, e eu sentia o peito apertado, como se cada palavra dele fosse uma pedra a cair-me em cima.

Olhei para ele, sentado à mesa com o jornal aberto, os olhos fixos nas notícias e não em mim. Tinha acabado de lhe dizer que queria candidatar-me à Escola Artística António Arroio. O meu coração batia descompassado, mas a esperança morreu logo ali, esmagada pelo desdém dele.

— Pai, eu só queria tentar… — arrisquei, a voz quase sumida.

Ele nem levantou os olhos. — Tentar? E depois? Vais viver de quê? De pintar quadros para turistas no Rossio? Não sejas ridícula, Matilde.

A porta da sala rangeu e a minha meia-irmã, Beatriz, apareceu com aquele ar de superioridade que sempre me irritou. Tinha vinte e três anos, filha do primeiro casamento do meu pai, e nunca me deixou esquecer que eu era a filha “do segundo round”, como ela dizia nas costas dele.

— Deixa lá, pai. A Matilde sempre teve a cabeça nas nuvens — disse ela, sorrindo de lado enquanto pegava numa maçã. — Mais vale arranjar-lhe um emprego na loja da tia Rosa.

Senti o sangue ferver-me nas veias. — Eu não sou como tu, Beatriz. Não quero passar a vida atrás de um balcão.

Ela riu-se. — Pois não. Queres é passar fome.

O meu pai bufou e virou a página do jornal. — Chega de discussões. Matilde, vais acabar o secundário e depois logo se vê. Não quero mais conversas sobre escolas de artistas.

Saí da cozinha antes que as lágrimas me traíssem. Subi as escadas a correr e fechei-me no quarto. O cheiro a tinta e papel era o meu refúgio. Peguei no caderno de esboços e desenhei o rosto da minha mãe — ou o que me lembrava dele. Ela tinha morrido há dois anos, de repente, deixando-me sozinha com um homem que nunca soube lidar com sentimentos e uma irmã que só sabia competir.

Lembro-me do funeral como se fosse ontem: o céu cinzento, as mãos frias do meu pai a apertarem as minhas, mas sem calor nenhum. Beatriz chorou lágrimas secas, mais preocupada com o vestido preto do que com a ausência da minha mãe.

Desde então, a casa ficou mais fria. O meu pai envelheceu dez anos em dois, e eu envelheci vinte. As conversas resumiam-se a ordens e críticas; os jantares eram silêncios interrompidos apenas pelo tilintar dos talheres.

Na escola, sentia-me deslocada. As colegas falavam de festas e namorados; eu desenhava nos cantos dos cadernos e fugia para a biblioteca sempre que podia. Só a professora Teresa parecia ver-me realmente.

— Tens talento, Matilde — disse-me ela um dia, ao ver os meus desenhos. — Não deixes ninguém apagar isso.

Essas palavras ficaram comigo como um segredo precioso. Mas em casa, talento era sinónimo de fraqueza.

Uma noite, ouvi o meu pai ao telefone na sala. A voz dele estava mais baixa do que o habitual:

— Não sei o que fazer com ela… Não é como a Beatriz… Está sempre fechada no quarto…

Senti uma raiva surda crescer dentro de mim. Porque é que ele nunca tentava perceber-me? Porque é que tudo o que eu fazia era errado?

No dia seguinte, decidi enfrentar Beatriz. Esperei por ela no corredor antes de sair para o trabalho.

— Porque é que tens tanto prazer em gozar comigo? — perguntei-lhe, sem rodeios.

Ela olhou-me de cima abaixo. — Porque és fraca. Porque deixas que ele te pise. Eu aprendi cedo: ou te fazes ouvir ou ninguém te vê.

— E achas que gozar comigo te faz mais forte?

Ela hesitou por um segundo. — Pelo menos não sou invisível.

Fiquei ali parada enquanto ela saía porta fora. Talvez fosse isso: eu era invisível naquela casa desde sempre.

Naquela noite, sentei-me à secretária e escrevi uma carta à minha mãe. Era um hábito antigo, mas agora as palavras saíam carregadas de mágoa:

“Mãe,
Sinto tanto a tua falta. O pai não me ouve e a Beatriz faz questão de me lembrar todos os dias que não pertenço aqui. Às vezes penso se não teria sido melhor ir contigo naquele dia… Mas depois lembro-me do que dizias: ‘A tua voz é tua arma’. Só queria saber como usá-la sem magoar ainda mais.”

Guardei a carta na gaveta e adormeci com lágrimas nos olhos.

Os dias passaram arrastados até ao aniversário da morte da minha mãe. O meu pai estava especialmente irritadiço; Beatriz nem apareceu em casa nesse dia.

Ao jantar, tentei falar:

— Pai… podemos ir ao cemitério amanhã?

Ele largou os talheres com força. — Para quê? Ela já não está lá.

— Mas eu preciso…

Ele levantou-se abruptamente. — Precisas? E eu? Achas que só tu sofres?

Fiquei sem palavras. Pela primeira vez vi lágrimas nos olhos dele, mas também vi raiva — uma raiva antiga, dirigida ao mundo inteiro.

— Eu também perdi alguém! — gritou ele antes de sair da sala.

Fiquei sozinha à mesa, com o prato intocado à minha frente.

Nessa noite sonhei com a minha mãe. Ela sorria-me num campo cheio de girassóis e dizia: “Não deixes que te calem”.

No dia seguinte fui sozinha ao cemitério. Levei-lhe um desenho: ela sentada no jardim da nossa antiga casa, rodeada de flores.

Sentei-me junto à campa e falei baixinho:

— Mãe… prometo que vou lutar por mim. Mesmo que ninguém me ouça agora.

Quando voltei a casa encontrei Beatriz sentada nas escadas.

— Foste ao cemitério? — perguntou ela sem ironia na voz.

Assenti.

Ela suspirou. — Eu não consigo lá ir… Sinto-me culpada por não ter estado mais presente quando ela adoeceu.

Olhei para ela surpreendida; pela primeira vez vi fragilidade nos olhos dela.

— Eu também sinto isso… — confessei.

Ficámos ali sentadas em silêncio durante minutos eternos.

Na semana seguinte tomei uma decisão: ia candidatar-me à António Arroio às escondidas do meu pai. Pedi ajuda à professora Teresa para preparar o portefólio e enviei tudo pelo correio sem dizer nada em casa.

Os dias seguintes foram um tormento de ansiedade e medo de ser descoberta. Até que chegou a carta: fui aceite na escola artística.

Mostrei-a à Beatriz primeiro; ela sorriu genuinamente pela primeira vez em anos.

— Tens coragem, miúda — disse ela, abraçando-me brevemente.

Quando contei ao meu pai foi uma tempestade: gritos, acusações de ingratidão, ameaças de cortar apoio financeiro.

Mas pela primeira vez não chorei nem fugi para o quarto. Fiquei ali de pé, firme:

— Eu vou seguir o meu caminho, pai. Mesmo que tenha de trabalhar para pagar os estudos sozinha.

Ele ficou calado durante muito tempo antes de sair porta fora sem dizer palavra.

Naquela noite escrevi outra carta à minha mãe:

“Mãe,
Hoje usei a minha voz pela primeira vez sem medo. Não sei se fiz bem ou mal… Mas sinto-te comigo.”

Agora olho para trás e pergunto-me: quantos jovens vivem calados nas suas próprias casas? Quantos sonhos morrem antes sequer de nascerem? Será que algum dia vamos aprender a ouvir verdadeiramente quem amamos?