À Sombra das Promessas: O Preço da Minha Liberdade

— Mariana, não te atrevas a sair de casa hoje. — A voz do Rui ecoou pela sala, fria e cortante, enquanto eu segurava as chaves do carro com as mãos a tremer. O relógio marcava sete da manhã, mas o peso daquela ameaça fazia parecer meia-noite.

Fiquei ali, imóvel, a olhar para ele. O Rui nunca gritava; era sempre assim, calmo e calculista, como se cada palavra fosse uma sentença. Eu sabia que se insistisse, a discussão ia escalar. Mas naquele dia, algo em mim já não aguentava mais.

— Preciso de ir trabalhar, Rui. Não posso faltar outra vez. — A minha voz saiu baixa, quase um sussurro, mas dentro de mim fervilhava uma raiva antiga, misturada com medo.

Ele aproximou-se devagar, como quem doma um animal assustado. — O teu lugar é aqui. A minha mãe vem cá hoje, não quero confusões. — O olhar dele era duro, mas eu já não conseguia desviar os olhos.

A mãe dele… Dona Teresa. Sempre pronta a apontar falhas: “Mariana, a casa está desarrumada”, “Mariana, o jantar está salgado”, “Mariana, devias pensar em ter filhos”. Eu era uma sombra na minha própria vida, a viver para agradar a todos menos a mim.

Lembro-me do dia em que casei com o Rui. Tinha 23 anos e um sonho ingénuo de felicidade. Os meus pais, o Sr. António e a D. Lurdes, estavam radiantes: “Finalmente uma filha casada com um homem de família!” Não sabiam que aquele homem de família ia transformar-se no meu carcereiro.

Os primeiros meses foram suportáveis. O Rui era atencioso em público, sorria para os vizinhos e fazia questão de me dar flores no aniversário. Mas em casa, as flores murchavam rápido. Começaram os comentários: “Não devias vestir isso”, “Com quem falaste ao telefone?”, “Porque é que chegaste tarde?”

No início tentei justificar tudo: “Ele preocupa-se comigo”, “É só ciúmes”, “Vai passar”. Mas não passou. Pelo contrário, piorou. Deixei de sair com as minhas amigas — a Ana e a Sofia ligavam-me todos os fins-de-semana e eu inventava desculpas: “Estou cansada”, “O Rui não se sente bem”. Até que deixaram de ligar.

A minha mãe percebia que algo não estava bem. Um dia apareceu em minha casa sem avisar. Encontrou-me sentada no chão da cozinha, a chorar baixinho.

— Mariana, filha… — Ela ajoelhou-se ao meu lado e abraçou-me. — O que se passa?

Quis contar-lhe tudo naquele momento: o medo de errar, o controlo sufocante, as noites em claro a olhar para o tecto. Mas calei-me. Tinha vergonha. Vergonha de admitir que tinha falhado no casamento que todos diziam ser perfeito.

O tempo foi passando e fui desaparecendo aos poucos. No trabalho, os colegas começaram a notar que eu já não sorria como antes. A minha chefe, Dona Graça, chamou-me ao gabinete:

— Mariana, tens a certeza que está tudo bem? — perguntou ela com aquele olhar maternal que me fazia sentir ainda mais frágil.

— Está tudo bem, só estou cansada — menti.

Mas não estava tudo bem. Em casa, o Rui controlava até o dinheiro que eu gastava no supermercado. Se comprasse algo fora da lista dele, havia discussão certa.

Uma noite, depois de mais uma visita da sogra cheia de críticas veladas, sentei-me na varanda e olhei para Lisboa iluminada lá em baixo. Perguntei-me como é que tinha chegado ali. Onde estava aquela Mariana cheia de sonhos? Onde estavam as gargalhadas com as amigas na esplanada do bairro? Onde estava eu?

Foi nesse momento que ouvi o Rui ao telefone na sala:

— Não te preocupes, ela nunca vai sair daqui sem mim saber…

O coração bateu mais forte. Com quem falava ele? E porque é que tinha tanta certeza de que eu nunca sairia?

Na manhã seguinte acordei decidida a fazer algo diferente. Liguei à Ana:

— Preciso de falar contigo — disse-lhe, com a voz embargada.

Ela apareceu meia hora depois no café da esquina. Quando me viu entrar, levantou-se logo e abraçou-me com força.

— Mariana… finalmente! — exclamou ela.

Contei-lhe tudo: o controlo do Rui, as ameaças veladas, o isolamento. Ela ouviu-me em silêncio e depois disse:

— Tens de sair daí. Não mereces viver assim.

Mas sair… Como? Para onde? E os meus pais? E se ninguém me apoiar?

Durante semanas vivi nesta angústia. O Rui percebeu que algo mudara em mim; tornou-se ainda mais controlador. Um dia chegou a casa mais cedo e apanhou-me a arrumar uma mala pequena.

— Vais a algum lado? — perguntou ele com um sorriso frio.

— Vou passar uns dias com os meus pais — respondi, tentando soar natural.

Ele riu-se.

— Achas mesmo que vais sair daqui assim?

Nesse momento percebi: ou saía naquele instante ou nunca mais teria coragem.

Corri para a porta com a mala na mão. Ele tentou agarrar-me pelo braço mas consegui soltar-me e desci as escadas a correr. O coração parecia que ia explodir no peito.

Fui para casa dos meus pais sem olhar para trás. Quando cheguei à porta da casa onde cresci, a minha mãe abriu-a antes mesmo de eu tocar à campainha.

— Mariana! — gritou ela ao ver-me naquele estado.

Desatei a chorar nos braços dela como uma criança perdida.

Os dias seguintes foram um turbilhão: telefonemas do Rui, mensagens ameaçadoras, visitas inesperadas do pai dele ao trabalho do meu pai para “resolver as coisas como gente civilizada”. A vergonha deu lugar à raiva; já não queria esconder nada.

O meu pai ficou devastado quando percebeu o que se passava realmente:

— Como é que nunca reparei? Como é que deixei isto acontecer à minha filha?

A minha mãe chorava baixinho à noite no quarto ao lado do meu.

A família dividiu-se: uns achavam que eu devia voltar para o Rui porque “um casamento é para sempre”; outros apoiavam-me timidamente mas tinham medo do escândalo na aldeia.

A Ana foi o meu pilar nesses dias negros:

— Mariana, tu és mais forte do que pensas. Não deixes ninguém decidir por ti.

Procurei ajuda profissional; comecei terapia com a Dra. Filipa e aos poucos fui reconstruindo quem era antes do medo.

O divórcio foi um processo doloroso e humilhante: audiências intermináveis, olhares reprovadores dos vizinhos e até ameaças anónimas deixadas na caixa do correio dos meus pais.

Mas sobrevivi.

Hoje olho para trás e vejo uma mulher diferente ao espelho: mais forte, mais livre — mas também marcada por cicatrizes invisíveis.

Às vezes pergunto-me: quantas mulheres vivem ainda presas em silêncios como o meu? Quantas Marianas existem nas casas ao lado?

E vocês? Já sentiram o peso das expectativas dos outros a sufocar-vos? O que fariam se tivessem de escolher entre agradar ao mundo ou salvar-se a si próprios?