A Sombra da Nova Ama: Um Dilema Familiar
— Não percebes o que está a acontecer, Luís? — perguntei-lhe, com a voz trémula, enquanto fechava a porta da cozinha atrás de mim. O cheiro do café acabado de fazer misturava-se com o aroma doce do bolo que a Dona Rosa tinha deixado na véspera. Mas nada disso me acalmava. — Ela está sempre a olhar para ti. Sempre a rir-se das tuas piadas, mesmo quando não têm graça nenhuma.
Luís pousou o jornal e olhou-me, cansado. — Estás a exagerar, Marta. A Ana é uma excelente ama. As crianças adoram-na. E tu sabes que precisamos dela agora.
Eu sabia. Sabia demasiado bem. Desde que a nossa querida Dona Rosa teve de regressar ao Alentejo para cuidar do marido doente, a nossa casa parecia um barco à deriva. Eu e o Luís trabalhávamos horas intermináveis — ele no escritório de advogados, eu na agência de publicidade — e os nossos filhos, o Tomás de cinco anos e a Leonor de três, precisavam de alguém que lhes desse atenção, carinho e rotina.
A Ana apareceu como um milagre: recomendada por uma amiga da minha mãe, com referências impecáveis e um sorriso aberto. Nos primeiros dias, tudo parecia perfeito. As crianças riam-se mais, a casa estava impecável e até o jantar aparecia pronto quando eu chegava exausta ao fim do dia. Mas depois começaram os pequenos detalhes.
No segundo dia, reparei que ela usava um batom vermelho vivo — demasiado ousado para quem passa o dia com crianças pequenas. No terceiro, ouvi-a rir-se alto demais das piadas do Luís enquanto ele lhe mostrava como funcionava o novo micro-ondas. No quarto dia, apanhei-a a arranjar o cabelo em frente ao espelho da entrada pouco antes do Luís chegar do trabalho.
— Achas mesmo que estou a exagerar? — insisti, sentindo o nó no estômago apertar-se.
Luís suspirou. — Marta, estamos cansados. Estamos stressados. Não podemos ver fantasmas onde não existem.
Mas eu via-os. Via-os em cada olhar prolongado, em cada toque acidental no braço dele quando passavam na cozinha apertada, em cada elogio disfarçado de brincadeira.
Naquela noite, depois de deitar as crianças, sentei-me na cama com o telemóvel na mão. Abri o grupo das mães da escola e escrevi: “Alguém conhece bem a Ana Oliveira? Contratei-a como ama mas sinto-me… desconfortável.” Esperei. O silêncio foi ensurdecedor. Só passados vinte minutos é que recebi uma resposta da Inês: “Ela trabalhou cá em casa uns meses. É muito eficiente… mas demasiado simpática com os maridos. Acabei por dispensá-la.” O meu coração disparou.
No dia seguinte, observei-a com mais atenção. Ana era eficiente, sim: brincava com as crianças no tapete da sala, fazia vozes engraçadas para os bonecos, dava-lhes banho com paciência infinita. Mas quando Luís chegou mais cedo do trabalho — coisa rara — ela endireitou-se imediatamente e sorriu-lhe como se ele fosse uma estrela de cinema.
— Boa tarde, Sr. Luís! — disse ela, ajeitando o cabelo atrás da orelha.
— Boa tarde, Ana — respondeu ele, distraído.
Eu estava ali ao lado, invisível.
À noite, tentei falar com ele outra vez.
— Não vês mesmo nada? — perguntei-lhe em voz baixa para não acordar as crianças.
Ele olhou-me nos olhos e disse: — Marta, confias em mim?
A pergunta ficou a ecoar na minha cabeça durante horas. Confiava? Claro que sim… ou pelo menos queria confiar. Mas aquela sensação estranha não me largava.
No fim-de-semana seguinte, decidi surpreender as crianças e fazer panquecas ao pequeno-almoço. Ouvi risos vindos do jardim e fui espreitar pela janela da cozinha. Ana estava sentada no relvado com Tomás e Leonor ao colo… e Luís ao lado dela, a mostrar-lhe fotos no telemóvel. Ela inclinou-se para ver melhor e tocou-lhe no ombro.
Senti uma raiva súbita misturada com vergonha por estar a espiar a minha própria família.
No domingo à noite, depois de deitarmos as crianças, sentei-me no sofá ao lado do Luís.
— Não aguento mais isto — disse-lhe num sussurro. — Ou ela vai embora ou eu enlouqueço.
Ele ficou calado durante muito tempo. Finalmente disse:
— Marta… se te faz sentir assim tão mal, vamos falar com ela amanhã.
Na manhã seguinte, chamei Ana à sala enquanto as crianças viam desenhos animados.
— Ana — comecei, tentando manter a voz firme — agradecemos tudo o que tem feito pelas crianças… mas acho que precisamos de seguir caminhos diferentes.
Ela ficou pálida por um instante mas depois sorriu tristemente.
— Eu compreendo, Dona Marta. Já aconteceu antes… Nem sempre as pessoas gostam da minha maneira de ser.
Senti-me péssima. Mas também aliviada.
Quando Ana saiu pela última vez pela porta da frente, Tomás chorou durante meia hora e Leonor recusou-se a comer o almoço. Eu abracei-os com força e prometi-lhes que tudo ia ficar bem.
Durante dias senti-me dividida entre o alívio e a culpa. Será que tinha sido injusta? Será que tinha deixado os meus ciúmes toldarem o meu julgamento? Ou será que tinha protegido a minha família de algo que podia ter corrido mal?
Agora olho para trás e pergunto-me: até onde devemos ir para proteger aquilo que é nosso? E como distinguir entre o medo irracional e os verdadeiros sinais de perigo? O que teriam feito vocês no meu lugar?