À Sombra da Minha Sogra: Uma Família Portuguesa à Beira do Abismo
— Não aguento mais, Miguel! — gritei-lhe, com a voz embargada, enquanto a loiça se acumulava na pia e as contas, abertas em cima da mesa, me olhavam como olhos acusadores. O Miguel, sentado à cabeceira da mesa, esfregava as têmporas, cansado, como se o peso do mundo lhe caísse nos ombros.
— E achas que eu aguento? — respondeu ele, num tom baixo, mas carregado de raiva contida. — A minha mãe não tem para onde ir.
A minha sogra, Dona Lurdes, estava sentada no sofá da sala, a ver o telejornal, como se nada se passasse. Desde que o meu sogro morreu, há dois anos, ela veio viver connosco. No início, achei que seria temporário, um apoio mútuo no luto. Mas o tempo passou, e a presença dela tornou-se um fardo. Não só financeiro, mas emocional.
A casa, pequena para quatro adultos e duas crianças, parecia encolher a cada dia. O cheiro do café forte de Dona Lurdes misturava-se com o aroma do detergente barato que eu usava para poupar uns trocos. O Miguel trabalhava horas extra na oficina, eu fazia limpezas em casas alheias. E mesmo assim, o dinheiro nunca chegava.
— Mãe, precisamos conversar — disse o Miguel, finalmente, numa noite em que o silêncio era tão pesado que até as crianças, a brincar no quarto, pareciam sussurrar. Dona Lurdes olhou para ele, olhos duros, braços cruzados.
— Se é para me dizeres que sou um estorvo, podes poupar o fôlego — atirou ela, antes que ele pudesse continuar. — Sempre fiz tudo por ti, Miguel. Dei-te de comer, vesti-te, e agora queres pôr-me na rua?
O Miguel engoliu em seco. Eu, ao lado dele, sentia o coração a bater tão forte que temi que ela ouvisse.
— Não é isso, mãe. Mas não conseguimos mais. As contas estão atrasadas, a renda vai aumentar, e as miúdas precisam de roupa para a escola. Não podemos continuar a sustentar três adultos com o que ganhamos.
Ela levantou-se, devagar, como se cada palavra fosse uma bofetada. — Então é isto? Depois de tudo, sou descartável?
— Não, mãe, mas precisamos de encontrar uma solução. Talvez possas pedir o complemento solidário para idosos, ou falar com a assistente social…
— Eu não sou uma pedinte! — gritou ela, com uma dignidade ferida que me cortou o coração. — Não vou andar a mendigar esmolas ao Estado!
Naquela noite, ninguém dormiu. O Miguel ficou a fumar na varanda, eu chorei baixinho na casa de banho, e Dona Lurdes trancou-se no quarto. As miúdas, a Matilde e a Leonor, perguntaram de manhã porque é que a avó não lhes fez o pequeno-almoço. Inventei uma desculpa qualquer, mas elas perceberam que algo estava errado.
Os dias seguintes foram um inferno. Dona Lurdes não me dirigia a palavra. Quando passava por mim no corredor, olhava-me como se eu fosse a culpada de tudo. O Miguel tentava mediar, mas acabava por se afastar, cansado das discussões. Eu sentia-me sozinha, esmagada entre o dever de cuidar da família e o ressentimento de ser sempre a má da fita.
Uma tarde, enquanto limpava o pó à estante, encontrei uma fotografia antiga do Miguel em criança, ao colo da mãe. Sorri, apesar de tudo. Lembrei-me de como ela me acolheu, no início do namoro, com um sorriso caloroso e um prato de arroz de pato. Onde é que tudo se perdeu?
O dinheiro continuava curto. Um dia, a Leonor chegou a casa com os sapatos rotos. Senti uma vergonha imensa quando a professora me chamou à escola para falar disso. — Dona Sofia, percebo que os tempos estão difíceis, mas a Leonor precisa de calçado adequado — disse-me, num tom compreensivo, mas que me fez sentir ainda mais pequena.
Fui ao supermercado e, pela primeira vez, tive de deixar produtos na caixa porque não chegava para tudo. O Miguel começou a chegar cada vez mais tarde, exausto. Uma noite, desabou:
— Não sei quanto mais aguento, Sofia. Sinto que estou a falhar como homem, como filho, como pai…
Abracei-o, mas sentia-me tão impotente como ele. O peso da responsabilidade esmagava-nos. E Dona Lurdes, cada vez mais amarga, começou a dizer coisas cruéis:
— No meu tempo, uma mulher sabia cuidar da casa. Não andava a chorar pelos cantos. — Ou então: — Se o Miguel tivesse casado com a Carla, aquela sim, era mulher para ele.
Essas palavras doíam mais do que qualquer dificuldade financeira. Sentia-me uma intrusa na minha própria casa. Comecei a evitar a sala, a passar mais tempo no quarto, a sair para trabalhar mais cedo só para não a ver.
Um dia, a Matilde ouviu-nos discutir. Veio ter comigo, olhos grandes, assustados:
— Mãe, a avó vai-se embora?
Ajoelhei-me ao pé dela, tentei sorrir. — Não sei, filha. Mas mesmo que vá, nós vamos ficar bem. Prometo.
Mas eu própria não acreditava nisso. O Miguel começou a falar em pedir um empréstimo, mas eu sabia que só nos ia afundar mais. Uma noite, depois de mais uma discussão, Dona Lurdes fez as malas. Encontrou um quarto numa pensão barata, com a ajuda de uma vizinha. Quando saiu, não me olhou nos olhos. O Miguel chorou como uma criança. As miúdas ficaram confusas, tristes.
A casa ficou mais silenciosa, mas o vazio era pesado. O Miguel culpava-se, eu sentia-me aliviada e culpada ao mesmo tempo. As contas continuavam difíceis, mas pelo menos havia menos tensão.
Passaram-se meses. Dona Lurdes raramente nos falava. No Natal, mandou um postal às netas, mas não apareceu. O Miguel ficou mais fechado, distante. Eu tentava manter a rotina, mas sentia que a família nunca mais seria a mesma.
Às vezes, pergunto-me: fizemos o certo? Será que alguma vez serei suficiente aos olhos da minha sogra? Ou estamos todos condenados a viver à sombra das expectativas dos outros? E vocês, o que fariam no meu lugar?