À Sombra da Minha Mãe – O Desmoronar de uma Família Portuguesa

— Outra vez sopa de legumes, Filipa? — A voz da minha mãe ecoou pela cozinha, carregada de desdém. — Quando eu era nova, fazia-se comida a sério, não estas águas sujas.

A colher tremeu-me na mão. O meu marido, António, fingiu ler o jornal, mas vi-lhe o maxilar cerrado. Os meus filhos, Inês e Miguel, trocaram olhares cúmplices e reviraram os olhos. Era mais um jantar como tantos outros desde que a minha mãe veio viver connosco há seis meses.

Nunca pensei que a velhice dela fosse ser assim. Sempre imaginei que, quando chegasse a altura, eu seria capaz de cuidar dela com amor e paciência. Mas ninguém me avisou que a minha mãe, Maria do Carmo, se tornaria ainda mais exigente e crítica do que já era. E ninguém me preparou para a forma como ela conseguiria dividir a minha família.

— Mãe, se não gostas, posso fazer-te outra coisa — tentei, com a voz baixa.

— Não é preciso, já estou habituada a não ser ouvida nesta casa — respondeu ela, empurrando o prato para o lado.

O silêncio caiu pesado. António levantou-se abruptamente.

— Vou fumar um cigarro lá fora — disse, sem olhar para ninguém.

Inês levantou-se também.

— Tenho de estudar para o exame — murmurou, desaparecendo pelo corredor.

Miguel ficou sentado à mesa, mexendo no telemóvel. Eu fiquei ali, sozinha com a minha mãe e o cheiro da sopa recusada.

Naquela noite, enquanto lavava a loiça, as lágrimas caíram-me sem aviso. Senti-me uma estranha na minha própria casa. Lembrei-me de quando era pequena e tudo o que fazia parecia insuficiente para agradar à minha mãe. Agora, adulta, com uma família minha, percebia que continuava presa à mesma teia de exigências e críticas.

No início, António foi compreensivo. “É só uma fase”, dizia-me. “Ela está assustada com a idade, com a doença.” Mas os meses passaram e a paciência dele foi-se esgotando. Começaram as discussões baixinho no quarto.

— Filipa, isto não é vida! A tua mãe trata-nos como se fôssemos empregados dela! Já viste como fala contigo? E com os miúdos?

— António, ela está frágil…

— Frágil? Ela está é cada vez mais autoritária! Não podemos continuar assim.

Eu tentava justificar tudo: a solidão dela, o medo da morte, as dores nas articulações. Mas sabia que ele tinha razão. A minha mãe ocupava todos os espaços: criticava a roupa da Inês, implicava com os horários do Miguel, dava ordens à empregada e até ao António. A casa deixou de ser nossa.

Uma noite ouvi Inês chorar no quarto. Bati à porta devagarinho.

— Posso entrar?

Ela limpou as lágrimas rapidamente.

— O que foi, filha?

— Não aguento mais a avó aqui… Ela diz que sou preguiçosa porque estudo em vez de trabalhar! E hoje chamou-me malcriada porque não lhe respondi logo!

Sentei-me ao lado dela e abracei-a. Senti-me impotente. Como podia proteger os meus filhos da própria avó?

Miguel também começou a passar mais tempo fora de casa. Chegava tarde, evitava as refeições em família. Um dia apanhei-o à porta de casa com um cigarro na mão.

— Miguel! Estás a fumar?

Ele encolheu os ombros.

— Antes fumar do que ouvir as bocas da avó…

O António começou a sair mais cedo para o trabalho e chegava mais tarde. O silêncio entre nós tornou-se ensurdecedor. Uma noite tentei falar com ele.

— Achas que estou a falhar como mãe? Como mulher?

Ele olhou-me nos olhos pela primeira vez em semanas.

— Não estás a falhar… Só estás exausta. Mas tens de escolher: ou continuamos assim até todos rebentarmos, ou fazes alguma coisa.

Fiquei noites sem dormir. Sentia-me culpada por pensar sequer em colocar a minha mãe num lar. Lembrei-me das histórias dela sobre como cuidou dos pais até ao fim. “Na nossa família não se abandona ninguém”, dizia sempre.

Mas será que cuidar dela significava sacrificar tudo o resto? A minha família estava a desmoronar-se diante dos meus olhos.

Um domingo à tarde tentei conversar com ela na sala.

— Mãe, precisamos de falar…

Ela olhou-me desconfiada.

— O que foi agora? Vais dizer que sou um peso?

— Não é isso… Só queria perceber se estarias disposta a passar uns dias na casa da tia Rosa…

Ela levantou-se num salto.

— Então é isso! Queres livrar-te de mim! Sempre foste ingrata! Dei-te tudo e agora queres atirar-me para os outros!

As palavras dela foram facas no meu peito. Chorei ali mesmo, à frente dela.

— Mãe… Eu só quero paz nesta casa… Quero que os meus filhos sejam felizes…

Ela ficou calada durante uns segundos eternos. Depois virou-me as costas e foi fechar-se no quarto.

Nos dias seguintes mal me falava. A tensão era insuportável. António sugeriu irmos todos passar um fim-de-semana fora — menos ela. Hesitei, mas acabei por concordar. Precisávamos de respirar.

Quando voltámos, encontrei-a sentada à mesa da cozinha, com uma mala feita ao lado.

— Vou para casa da Rosa — disse apenas. — Não quero ser um estorvo.

Tentei convencê-la do contrário, mas ela estava decidida. Abraçou-me rapidamente e saiu sem olhar para trás.

A casa ficou estranhamente silenciosa nos dias seguintes. Os miúdos voltaram a sorrir à mesa. O António voltou a fazer piadas. Mas eu sentia um vazio enorme dentro de mim — culpa misturada com alívio.

Passaram-se meses até conseguir visitar a minha mãe na casa da tia Rosa. Quando finalmente fui vê-la, estava mais magra e calada do que nunca. Sentámo-nos frente a frente na sala pequena e fria.

— Desculpa se te magoei — disse-lhe baixinho.

Ela olhou para mim com olhos cansados.

— Foste tu quem sofreu mais… Eu só não queria ficar sozinha.

Chorámos as duas em silêncio durante muito tempo.

Hoje olho para trás e pergunto-me: quantas famílias portuguesas vivem presas neste ciclo de culpa e sacrifício? Até onde devemos ir por amor aos nossos pais? E quando é que começamos finalmente a cuidar de nós próprios?