À Sombra da Minha Irmã: Uma Vida de Comparações e Silêncios

— Por que não podes ser mais como a Mariana? — A voz da minha mãe ecoou pela cozinha, cortando o silêncio como uma faca. Eu tinha acabado de chegar da escola, mochila ainda às costas, e já sentia o peso do dia aumentar. Mariana, a minha irmã mais velha, estava sentada à mesa, os olhos baixos, fingindo não ouvir. Mas eu sabia que ela ouvia tudo. Sempre ouviu.

Desde pequena, vivi com esta pergunta. Mariana era a filha perfeita: notas altas, educada, nunca levantava a voz. Eu era o oposto — pelo menos aos olhos da minha mãe. Não era má aluna, mas também não era brilhante. Gostava de desenhar, de escrever poemas, de passar horas a olhar pela janela do nosso apartamento em Lisboa, imaginando outras vidas. Mas nada disso parecia importar.

— Mãe, eu sou eu — tentei responder, a voz trémula.

— Pois, mas podias esforçar-te mais — suspirou ela, virando-se para lavar a loiça. — A tua irmã já está a pensar na universidade. E tu? O que vais fazer da vida?

Mariana levantou-se devagar e pousou uma mão no meu ombro. — Deixa-a em paz, mãe. Cada uma tem o seu caminho.

A minha mãe ignorou-a. E eu fiquei ali, imóvel, a sentir-me pequena. Era sempre assim: Mariana tentava defender-me, mas acabava por ser mais uma razão para eu me sentir inferior. Até o seu apoio parecia perfeito.

Os anos passaram e as comparações só se intensificaram. No liceu, quando Mariana entrou em Medicina na Universidade de Lisboa com média quase perfeita, houve festa em casa. Primos, tios, vizinhos — todos vieram celebrar a conquista da filha prodígio. Eu estava no meu quarto, a desenhar no caderno, fingindo que não me importava por ninguém ter perguntado pelas minhas notas de Literatura.

O meu pai era o único que tentava equilibrar as coisas. — A tua irmã é boa numa coisa, tu noutra — dizia-me ele à noite, quando a casa finalmente se calava. — Não deixes que te digam quem és.

Mas era difícil não deixar.

Quando terminei o secundário, decidi candidatar-me a Belas Artes. A minha mãe ficou furiosa.

— Belas Artes? Vais ser artista? Isso não é profissão! Olha para a tua irmã! Médica! Isso sim é futuro!

— Mãe, eu não sou a Mariana! — gritei pela primeira vez na vida.

O silêncio que se seguiu foi ensurdecedor. Mariana não estava em casa nesse dia; talvez tivesse sido mais fácil se estivesse. O meu pai tentou acalmar-nos, mas a minha mãe saiu da sala sem dizer palavra.

Entrei na faculdade com um misto de alívio e culpa. Por um lado, sentia-me finalmente livre para ser quem queria; por outro, carregava o peso de ter desiludido a minha mãe. Mariana ligava-me todas as semanas para saber como estava.

— Não ligues à mãe — dizia ela. — Ela só quer o melhor para nós.

— O melhor para ti — respondia eu, amarga.

— Não digas isso…

Mas era verdade. Toda a vida senti que o amor da minha mãe vinha com condições: sê como a tua irmã e terás o meu orgulho.

Os anos passaram depressa. Mariana terminou o curso e começou o internato num hospital em Lisboa. Eu expus os meus quadros numa galeria pequena em Alfama e comecei a dar aulas de desenho numa escola secundária. O meu pai continuava a ser o meu maior apoio; ia a todas as exposições, orgulhoso.

Mas a minha mãe nunca apareceu.

— Não tenho tempo para essas coisas — dizia ela quando eu insistia.

O tempo foi passando e as feridas foram ficando mais fundas. Quando o meu pai adoeceu subitamente com um AVC, tudo mudou. Mariana assumiu o controlo da situação: médicos, tratamentos, decisões difíceis. Eu sentia-me inútil ao lado dela; tudo o que fazia parecia insignificante.

Numa noite fria de janeiro, sentei-me ao lado do meu pai no hospital. Ele segurou-me a mão com força surpreendente.

— Não deixes que te apaguem — sussurrou ele. — Tu és luz à tua maneira.

Chorei baixinho para não acordar os outros doentes.

O meu pai morreu duas semanas depois. O funeral foi um desfile de elogios à família perfeita: Mariana forte e dedicada; eu calada num canto, sentindo-me invisível até no luto.

Depois da morte do meu pai, a relação com a minha mãe tornou-se insuportável. Ela mudou-se para casa da Mariana e quase nunca me ligava. Quando nos víamos nos almoços de família, as conversas eram superficiais.

Um dia, durante um desses almoços, explodi:

— Alguma vez vais perguntar como estou? Ou só te interessa saber da Mariana?

O silêncio caiu sobre a mesa como uma pedra. Mariana olhou-me com tristeza; a minha mãe ficou vermelha de raiva.

— Sempre foste ingrata! Dei-te tudo! Só porque não és como a tua irmã…

Levantei-me e saí sem olhar para trás.

Durante meses não falei com nenhuma das duas. Afastei-me da família e mergulhei no trabalho e na pintura. Os meus quadros tornaram-se mais sombrios; retratos de mulheres presas em sombras enormes.

Foi numa dessas noites solitárias que recebi uma mensagem da Mariana:

“Preciso de ti. A mãe está doente.”

Voltei para casa sem saber o que esperar. A minha mãe estava magra e cansada; um diagnóstico de cancro avançado tinha-lhe roubado a energia e parte do orgulho.

Durante semanas revezámo-nos nos cuidados dela. Pela primeira vez em anos, estivemos as três juntas sem discussões abertas — mas também sem grandes conversas.

Numa madrugada em que fiquei sozinha com ela no hospital, sentei-me ao seu lado e segurei-lhe a mão.

— Mãe… porque nunca conseguiste gostar de mim como gostavas da Mariana?

Ela olhou-me nos olhos pela primeira vez em muito tempo.

— Não é verdade… Só queria proteger-te do mundo… Queria que fosses forte…

— Mas nunca fui suficiente para ti…

Ela chorou baixinho e apertou-me a mão com força surpreendente para alguém tão frágil.

— Desculpa…

A minha mãe morreu poucas semanas depois dessa conversa. No funeral, Mariana abraçou-me como nunca antes.

Hoje vivo sozinha num pequeno apartamento em Lisboa. Dou aulas e continuo a pintar — agora quadros mais luminosos, onde as sombras já não engolem as figuras por completo.

Às vezes olho para trás e pergunto-me: será possível libertarmo-nos das sombras em que crescemos? Ou passamos toda a vida à procura do nosso próprio lugar ao sol?