A Sogra em Guerra: O Dia em que o Destino Bateu à Porta
— Achas mesmo que sabes cozinhar bacalhau à Brás? — A voz da Dona Lurdes cortou o silêncio da cozinha como uma faca afiada. — O Miguel sempre gostou do meu, não é, filho?
Miguel olhou-me de soslaio, hesitante, como quem pede desculpa sem palavras. Eu sorri, tentando disfarçar a raiva que me fervia por dentro. Era sempre assim. Desde o dia em que casei com ele, há catorze anos, que a Dona Lurdes fazia questão de me lembrar que nunca seria suficiente. Não para ela. Não para a família dos Soares.
Lembro-me do nosso casamento como se fosse ontem. O vestido branco, as flores amarelas, o sorriso nervoso do Miguel ao altar. E lembro-me também do olhar dela, frio e calculista, enquanto me cumprimentava com dois beijos apressados e um sussurro: — Espero que saibas cuidar dele.
Cuidar dele? Eu era enfermeira no Hospital de Santa Maria, trabalhava turnos de doze horas e ainda chegava a casa para fazer o jantar e tratar da roupa. Mas nada era suficiente para Dona Lurdes. Se o arroz estava demasiado solto, era porque eu não sabia cozinhar. Se o Miguel chegava cansado, era porque eu não sabia cuidar dele. Se eu engravidei tarde, foi porque “as mulheres de hoje só pensam na carreira”.
A minha mãe dizia-me para ter paciência. — Ela é assim com toda a gente, filha. — Mas eu sabia que não era verdade. Com a minha cunhada, a Ana, era só sorrisos e elogios. Comigo, era guerra aberta.
O pior foi quando nasceu a nossa filha, a Matilde. Dona Lurdes apareceu no hospital com um ramo de flores e um saco de laranjas. — Para te dar força — disse ela. Mas depois, quando ficou sozinha comigo no quarto, baixou a voz: — Espero que saibas ser mãe melhor do que és mulher.
Chorei nessa noite como nunca tinha chorado antes. Miguel tentou consolar-me, mas ele próprio estava preso entre duas lealdades impossíveis.
Os anos passaram e as coisas só pioraram. Dona Lurdes fazia questão de aparecer em nossa casa sem avisar, criticava tudo — desde a decoração até à forma como eu educava a Matilde. Uma vez, quando Matilde tinha cinco anos e fez um desenho para mim, Dona Lurdes disse-lhe: — Devias ter desenhado a avó, que é quem realmente cuida de ti.
Miguel tentava apaziguar as coisas. — A minha mãe é de outra geração — dizia ele. Mas eu sentia-me cada vez mais sozinha naquela casa cheia de vozes e silêncios pesados.
Até que um dia tudo mudou.
Foi numa manhã de domingo. Estávamos todos sentados à mesa do pequeno-almoço quando o telefone tocou. Era a vizinha da Dona Lurdes.
— É melhor virem cá depressa — disse ela, aflita. — A Dona Lurdes caiu nas escadas do prédio.
Corremos para lá. Encontrámo-la sentada no chão do hall de entrada, com o tornozelo inchado e lágrimas nos olhos. Pela primeira vez em muitos anos, vi-a vulnerável.
No hospital, os médicos confirmaram: fratura complicada no tornozelo direito. Precisaria de cirurgia e meses de recuperação.
Miguel olhou para mim com aquele olhar suplicante que eu já conhecia tão bem.
— Ela não tem mais ninguém…
Eu sabia o que ele queria dizer. Durante semanas, fui eu quem tratou da Dona Lurdes em nossa casa. Dei-lhe banho, preparei-lhe as refeições, levei-a às consultas. E ouvi tudo: as críticas veladas, os suspiros impacientes, os comentários sobre como “no meu tempo as mulheres sabiam cuidar da família”.
Mas algo começou a mudar.
Uma noite, depois de lhe levar o chá ao quarto, encontrei-a a chorar baixinho.
— Sabe… — disse ela, com a voz embargada — Quando perdi o meu marido, achei que ia ficar sozinha para sempre. O Miguel era tudo o que me restava… E quando ele casou consigo…
Fiquei ali parada, sem saber o que dizer.
— Tive medo — continuou ela. — Medo de perder o meu filho. E por isso fui dura consigo… Demasiado dura.
Senti um nó na garganta. Anos de mágoa e ressentimento pesavam-me nos ombros.
— Eu só queria ser aceite — confessei-lhe finalmente.
Ela olhou-me nos olhos pela primeira vez em muito tempo.
— Talvez ainda vá a tempo de aprender…
A partir desse dia, as coisas começaram a mudar devagarinho. Dona Lurdes já não criticava tanto; até elogiou o meu arroz uma vez (embora tenha dito que ainda preferia o dela). Começou a pedir-me conselhos sobre pequenas coisas e até pediu desculpa à Matilde por ter sido injusta.
Hoje olho para trás e penso: será que foi preciso uma queda para ela perceber tudo aquilo que eu sentia? Será que o destino tem mesmo uma forma estranha de nos ensinar lições?
Às vezes pergunto-me: quantas famílias vivem presas nestes silêncios e mágoas? E se fossemos todos um bocadinho mais honestos uns com os outros… será que evitaríamos tanta dor?