A Proposta da Minha Sogra: Entre a Promessa e a Desilusão
— Mariana, ouve-me bem: isto é para o bem da Leonor. — A voz da minha sogra, Dona Lurdes, ecoava pela sala, carregada de aquela convicção que só ela sabia ter. — Se me passarem as vossas poupanças, eu trato de pôr o apartamento no nome da vossa filha. Assim ninguém vos tira nada.
Senti o coração apertar. O Miguel, meu marido, olhava para mim, indeciso, como se esperasse que eu resolvesse tudo com um aceno de cabeça. A Leonor, com apenas seis anos, brincava no tapete, alheia ao peso daquela conversa.
“Será que ela pensa mesmo que somos ingénuos?”, pensei. O suor nas minhas mãos denunciava o nervosismo. O apartamento era antigo, mas era o único bem de valor da família do Miguel. E Dona Lurdes sempre fez questão de lembrar que era dela, só dela.
— Mãe, não sei se isso faz sentido… — arriscou o Miguel, mas a mãe cortou-lhe a palavra.
— Faz todo o sentido! Acham que eu vou viver para sempre? Quero garantir que a Leonor fica protegida. Mas preciso de dinheiro para as obras. Vocês têm as poupanças paradas…
A verdade é que tínhamos algum dinheiro guardado. Anos de sacrifícios, noites sem dormir, horas extra no hospital onde trabalho como enfermeira. E agora, tudo podia desaparecer num acordo verbal?
— Dona Lurdes, desculpe, mas… — tentei intervir.
— Mariana, não compliques! — interrompeu-me ela, já com aquele tom autoritário. — Sempre foste desconfiada. Olha que isto é para o vosso bem!
O Miguel suspirou fundo. Eu sabia que ele queria agradar à mãe, mas também sentia o peso da responsabilidade. O silêncio instalou-se por uns segundos, apenas interrompido pelo riso inocente da Leonor.
Naquela noite, depois de deitar a Leonor, sentei-me na varanda com o Miguel.
— Achas mesmo boa ideia? — perguntei-lhe em voz baixa.
Ele encolheu os ombros.
— Não sei… Ela é minha mãe. Nunca nos ia enganar.
— Mas e se… E se ela muda de ideias? E se acontece alguma coisa? Não temos nada por escrito…
O Miguel ficou calado. Sabia que eu tinha razão. Mas também sabia que enfrentar a mãe era quase impossível para ele.
Os dias passaram e a pressão aumentou. Dona Lurdes ligava todos os dias:
— Já pensaram? Preciso de resposta! Não posso esperar para sempre!
No trabalho, mal conseguia concentrar-me. Os colegas notavam o meu ar ausente.
— Mariana, está tudo bem? — perguntou-me a Ana, minha amiga do hospital.
— Não sei… A minha sogra quer que lhe demos as poupanças em troca do apartamento para a Leonor… Mas não há nada escrito…
A Ana arregalou os olhos.
— Nem penses! Isso é arriscado demais! Já ouvi histórias dessas…
Voltei para casa com a cabeça à roda. O Miguel estava sentado à mesa da cozinha, com um papel na mão.
— A mãe disse que pode escrever uma declaração simples… — disse ele, hesitante.
— Uma declaração? Isso não vale nada em tribunal! — respondi, já sem conseguir esconder a irritação.
A discussão subiu de tom. Pela primeira vez em anos, gritámos um com o outro.
— Sempre desconfias da minha família! — atirou ele.
— Não é isso! É a nossa filha! É o nosso futuro!
A Leonor apareceu à porta, olhos grandes e assustados.
— Mãe? Pai? Estão zangados?
Corri para ela e abracei-a.
— Não, querida… Só estamos a falar alto.
Mas por dentro sentia-me a desmoronar. Como podia proteger a minha filha se nem eu sabia em quem confiar?
Na semana seguinte, Dona Lurdes apareceu lá em casa sem avisar. Trazia um bolo e um envelope na mão.
— Pronto! Aqui está a declaração! — disse ela triunfante. — Agora só falta transferirem o dinheiro.
Olhei para o papel: meia dúzia de linhas escritas à mão, sem reconhecimento notarial, sem testemunhas. Senti um nó na garganta.
— Dona Lurdes… Isto não chega. Precisamos de ir ao notário. Fazer tudo direitinho.
Ela ficou vermelha de raiva.
— Acham que sou uma vigarista? Depois de tudo o que fiz por vocês?
O Miguel tentava acalmar os ânimos:
— Mãe… A Mariana só quer ter a certeza…
Mas ela não queria ouvir mais nada. Levantou-se bruscamente e saiu porta fora, deixando o bolo e o envelope em cima da mesa.
Os dias seguintes foram um inferno. O Miguel mal me falava. A Dona Lurdes deixou de ligar. O ambiente em casa era pesado; até a Leonor parecia mais calada.
Uma noite, depois de adormecer a Leonor, sentei-me sozinha na sala escura. As lágrimas corriam-me pelo rosto sem eu dar conta. Senti-me culpada por desconfiar da sogra, culpada por magoar o Miguel, culpada por não conseguir proteger a minha família.
No trabalho, comecei a cometer erros. Um dia quase dei medicação errada a um doente. A chefe chamou-me ao gabinete.
— Mariana, estás bem? Precisas de uns dias?
Assenti em silêncio. Tirei dois dias de licença e fui passear sozinha até à praia da Costa da Caparica. Sentei-me na areia fria e deixei o vento levar os meus pensamentos.
“Será que estou a ser demasiado dura? Será que devia confiar?”
Lembrei-me do meu pai, sempre tão prudente com dinheiro e promessas. “Nunca ponhas tudo nas mãos dos outros”, dizia ele.
Quando voltei a casa, encontrei o Miguel sentado no sofá com a Leonor ao colo.
— A mãe ligou — disse ele sem me olhar nos olhos. — Disse que se não lhe dermos o dinheiro até ao fim do mês vai vender o apartamento ao primo Rui.
Senti uma raiva surda crescer dentro de mim.
— Então é assim? Ou damos tudo ou ficamos sem nada?
O Miguel encolheu-se ainda mais no sofá.
— Não sei o que fazer…
Respirei fundo e sentei-me ao lado dele.
— Miguel… Eu amo-te. Mas não posso pôr em risco tudo aquilo por que lutámos só porque a tua mãe faz chantagem emocional connosco.
Ele olhou finalmente para mim, olhos vermelhos de tanto chorar às escondidas.
— E se ela nunca mais nos fala? E se perdemos tudo?
Abracei-o com força.
— Se perdermos tudo porque não cedemos à chantagem… então nunca foi nosso para começar.
Na manhã seguinte liguei à Dona Lurdes.
— Dona Lurdes, desculpe mas não podemos aceitar as suas condições. Se quiser mesmo garantir o futuro da Leonor, podemos ir juntos ao notário e fazer as coisas como deve ser. Caso contrário… não vamos avançar.
Ela ficou em silêncio do outro lado da linha durante longos segundos.
— Vocês é que sabem — disse finalmente, fria como gelo. — Mas depois não digam que não vos avisei.
Desliguei com as mãos a tremer mas sentindo uma estranha paz interior. Pela primeira vez em muito tempo senti que estava a proteger verdadeiramente a minha família — mesmo que isso significasse enfrentar quem mais amamos.
Hoje olho para trás e pergunto-me: quantas vezes deixamos os outros decidir por nós só porque têm laços de sangue? Será que vale mesmo tudo para manter uma promessa familiar?