À Procura do Amor Perdido: O Reencontro com a Minha Infância

— Não podes continuar assim, Miguel! — gritou a minha mãe, com a voz embargada pela raiva e pelo medo. — A Inês já não faz parte da nossa vida. Aceita isso!

Eu estava sentado à mesa da cozinha, as mãos trémulas a apertar uma chávena de chá frio. Lá fora, a chuva batia com força nos vidros, como se quisesse entrar e lavar tudo o que doía cá dentro. Tinha vinte e oito anos, mas sentia-me um miúdo perdido outra vez, como naquela noite em que vi a Inês ser levada pela Segurança Social.

A Inês era a minha vizinha desde sempre. Crescemos juntos num bairro antigo de Coimbra, onde todos se conheciam e as portas ficavam entreabertas no verão. Ela era filha única de um homem bom, o senhor António, que trabalhava na fábrica de papel, e de uma mulher que raramente víamos sóbria. A minha mãe dizia que a dona Rosa tinha o coração partido e procurava remendá-lo no fundo das garrafas de vinho barato.

Foi numa tarde de junho, quando tínhamos quinze anos, que tudo mudou. O senhor António morreu subitamente — ataque cardíaco, disseram. Lembro-me do choro da Inês, do olhar vazio da mãe dela e do silêncio pesado que se abateu sobre aquela casa. Nos dias seguintes, a dona Rosa afundou-se ainda mais no álcool e esqueceu-se da filha. Eu tentava ajudar como podia: levava comida, fazia-lhe companhia, mas sentia-me impotente.

Uma noite, ouvi gritos vindos da casa deles. Corri para lá e encontrei a Inês encolhida num canto, com os olhos vermelhos de tanto chorar. Abracei-a com força e prometi que nunca a deixaria sozinha. Mas não consegui cumprir essa promessa. Dois dias depois, chegaram os assistentes sociais. Levaram-na para um lar em Viseu. Fiquei parado à porta, a vê-la desaparecer no carro cinzento, enquanto ela me acenava com uma mão trémula.

A partir desse dia, tudo perdeu cor. Os meus pais tentaram animar-me, mas eu só pensava nela. Escrevi-lhe cartas durante meses, mas nunca tive resposta. Diziam-me para seguir em frente, mas como se faz isso quando metade de nós ficou presa ao passado?

Os anos passaram. Acabei o secundário sem brilho, entrei na universidade por obrigação e arrastei-me por empregos sem sentido. Tive namoradas, mas nenhuma era a Inês. Às vezes sonhava com ela: via-a sentada à beira do Mondego, a rir-se do meu jeito desajeitado de lhe declarar amor.

Foi numa dessas noites de insónia que decidi procurá-la. Não sabia por onde começar. Fui ao antigo lar em Viseu — disseram-me que ela tinha sido adotada por uma família em Aveiro, mas não podiam dar-me mais informações. Senti-me esmagado pela burocracia e pelo tempo perdido.

Voltei para Coimbra desanimado, mas algo dentro de mim não me deixava desistir. Falei com antigos vizinhos, procurei nas redes sociais, escrevi mensagens para grupos de antigos alunos. Durante meses não obtive resposta.

Até que um dia recebi uma mensagem anónima no Facebook: “Se procuras a Inês, ela trabalha numa pastelaria em Aveiro.” O coração quase me saltou do peito. No dia seguinte apanhei o comboio das seis da manhã e fui à procura dela.

Entrei na pastelaria com as mãos suadas e o coração aos pulos. Vi-a atrás do balcão: o cabelo castanho apanhado num rabo-de-cavalo, os olhos grandes e tristes como eu me lembrava. Hesitei antes de me aproximar.

— Inês? — sussurrei.

Ela olhou para mim durante longos segundos. Depois sorriu — um sorriso tímido, mas verdadeiro.

— Miguel? És mesmo tu?

Sentámo-nos numa mesa ao fundo da pastelaria. Falámos durante horas: sobre o passado, sobre as feridas que nunca sararam, sobre os sonhos adiados. Ela contou-me como foi difícil adaptar-se à nova família — nunca se sentiu verdadeiramente filha deles. Trabalhou desde cedo para ajudar em casa e nunca voltou a ver a mãe biológica.

— Sinto falta do nosso bairro — disse ela, com lágrimas nos olhos. — Sinto falta de ti.

Nesse momento percebi que o tempo não apaga tudo. Há dores que ficam entranhadas na pele e amores que resistem ao esquecimento.

Começámos a encontrar-nos todos os fins de semana. Passeávamos à beira-mar, ríamos das nossas memórias e sonhávamos com um futuro juntos. Mas nem tudo era fácil. A minha mãe não aceitava o nosso reencontro.

— Essa rapariga só te vai trazer problemas — dizia ela sempre que eu chegava tarde a casa. — Já te esqueceste do que passaste por causa dela?

Eu tentava explicar-lhe que a Inês não era culpada de nada, mas ela não queria ouvir. O meu pai mantinha-se em silêncio — talvez por medo de reabrir feridas antigas.

A pressão aumentou quando decidi pedir a Inês em casamento. A minha família ficou dividida: alguns apoiaram-me, outros viraram-me as costas.

— Vais estragar a tua vida! — gritou o meu irmão mais velho durante um jantar de família.

— Prefiro arriscar do que viver arrependido — respondi-lhe.

Marcámos o casamento para setembro. A Inês estava radiante, mas eu sentia um peso no peito: será que conseguiríamos ser felizes apesar de tudo?

Na véspera do casamento recebi uma chamada inesperada: era a mãe biológica da Inês. Estava internada num hospital em Lisboa e queria vê-la antes de morrer.

Fomos juntos ao hospital. A dona Rosa estava irreconhecível — magra, frágil, com os olhos cheios de remorsos.

— Desculpa… — murmurou ela à filha. — Desculpa por tudo o que te fiz passar.

A Inês chorou nos braços da mãe e eu percebi que aquele perdão era necessário para podermos começar uma nova vida.

O casamento foi simples mas cheio de emoção. Os poucos familiares presentes choraram connosco enquanto trocávamos votos escritos à mão.

Hoje vivemos numa pequena casa perto do rio Vouga. Não temos muito dinheiro nem certezas sobre o futuro, mas temos um ao outro e isso basta-nos.

Às vezes pergunto-me: quantos de nós deixamos escapar o amor por medo ou orgulho? E se tivéssemos coragem de lutar pelo que realmente importa? Talvez seja essa a pergunta que todos devíamos fazer antes de desistir.