A noite em que perdi a minha filha e me reencontrei

— Mãe, podes trazer o bolo de cenoura? Sabes que é o meu preferido… — pediu a Inês ao telefone, com aquela voz doce que sempre me desarma. Sorri, sentindo o coração apertado de saudade. Desde que ela se mudou para Lisboa, os nossos encontros tornaram-se raros e cheios de formalidades.

— Claro, filha. Faço questão. — respondi, tentando esconder a ansiedade. O convite para passar o fim de semana no novo apartamento dela era inesperado e, confesso, um pouco assustador. Sentia que havia algo por detrás daquele convite, uma urgência silenciosa.

Cheguei ao prédio antigo em Arroios com o bolo ainda quente e as mãos trémulas. O cheiro a castanhas assadas misturava-se com o frio húmido da cidade. Inês abriu-me a porta com um sorriso largo, mas os olhos… os olhos estavam diferentes, como se escondessem uma tempestade.

— Anda, mãe! Quero mostrar-te tudo! — exclamou, puxando-me pelo braço. O apartamento era pequeno, mas acolhedor. Fotografias nossas espalhadas pelas paredes, livros empilhados em cada canto e uma manta de lã no sofá. Senti-me orgulhosa e, ao mesmo tempo, distante daquela nova vida da minha filha.

O jantar foi animado. Rimos das histórias antigas, falámos do trabalho dela no hospital e dos meus alunos na escola primária de Sintra. Mas havia silêncios estranhos, pausas longas em que Inês parecia procurar palavras que nunca chegavam.

Depois do jantar, ela recebeu uma mensagem e pediu licença para ir à varanda falar ao telefone. Fiquei sozinha na sala, arrumando os pratos e ouvindo o murmúrio abafado da conversa lá fora. Não queria escutar, mas as palavras chegaram até mim como facas:

— Não aguento mais fingir… Ela nunca vai perceber quem eu sou de verdade… — ouvi a voz da Inês, trémula. — Não posso continuar a viver nesta mentira só para agradar à minha mãe.

Senti o chão fugir-me dos pés. O bolo de cenoura caiu-me das mãos e espalhou-se pelo tapete. O coração batia descompassado. “O que é que eu não percebo? Que mentira é esta?” — pensei, tentando controlar as lágrimas.

Quando Inês voltou, tentei sorrir, mas ela percebeu logo que algo estava errado.

— Mãe… estás bem? — perguntou, pousando a mão no meu ombro.

— Ouvi-te na varanda… — sussurrei. — O que é que se passa, filha? Que mentira é essa?

Ela ficou pálida. Sentou-se à minha frente e olhou-me nos olhos como nunca antes.

— Mãe… eu… — hesitou, respirando fundo. — Eu não sou a filha perfeita que tu imaginas. Tenho medo de te desiludir. Tenho medo de perder o teu amor.

Senti uma dor aguda no peito. Quis abraçá-la, dizer-lhe que nada mudaria o meu amor por ela, mas as palavras ficaram presas na garganta.

— Desiludir-me? Porquê? — perguntei, quase sem voz.

Ela baixou os olhos e começou a chorar.

— Eu estou apaixonada pela Mariana… Somos namoradas há dois anos. Nunca tive coragem de te contar porque sempre tiveste tantos sonhos para mim… Casamento, filhos… Eu tentei corresponder às tuas expectativas, mas não consigo mais viver assim.

O silêncio caiu sobre nós como uma sentença. Senti-me traída e envergonhada por não ter percebido antes. Lembrei-me das vezes em que fiz comentários sem pensar, das perguntas insistentes sobre namorados, dos conselhos sobre o futuro “ideal”.

— Porque é que nunca confiaste em mim? — perguntei, magoada.

Inês levantou-se de repente.

— Porque tu nunca quiseste ver quem eu realmente sou! Sempre quiseste a filha perfeita da tua cabeça! — gritou ela, com lágrimas nos olhos.

As palavras dela ecoaram pela casa. Senti-me pequena, impotente. Quis fugir dali, mas fiquei sentada no sofá, olhando para as mãos sujas de bolo.

A noite foi longa. Não dormimos. Inês fechou-se no quarto e eu fiquei na sala a olhar para as fotografias nas paredes. Vi ali uma menina feliz ao meu colo, um sorriso aberto no primeiro dia de escola, um abraço apertado na praia da Nazaré… Onde é que eu perdi a minha filha? Quando é que deixei de a ver como ela era?

De manhã, preparei café e bati à porta do quarto dela.

— Inês… podemos falar?

Ela abriu a porta devagar. Os olhos inchados de tanto chorar.

— Desculpa se te magoei… — disse ela baixinho.

Sentei-me ao lado dela na cama.

— Não tens de pedir desculpa por seres quem és… Eu é que devia pedir desculpa por nunca ter perguntado quem eras realmente.

Chorámos juntas durante muito tempo. Pela primeira vez em anos senti que estava a falar com a minha filha verdadeira e não com a imagem idealizada que criei na minha cabeça.

Nesse fim de semana perdi as ilusões sobre o futuro perfeito que imaginei para nós duas. Perdi também a filha que achava conhecer tão bem. Mas encontrei uma mulher corajosa à minha frente e descobri em mim uma força nova para aceitar e amar sem condições.

Hoje olho para trás e pergunto-me: quantas vezes amamos mais as nossas ideias do que as pessoas reais à nossa frente? Quantas mães e pais vivem cegos pelo medo de perderem os filhos sem perceberem que já os perderam há muito tempo?

E tu? Já te perguntaste se conheces mesmo quem mais amas?