A noite em que a minha filha me acusou de destruir o seu mundo

— Mãe, tu nunca percebeste nada do que eu sentia! — gritou a Inês, com os olhos marejados de lágrimas, a voz a tremer entre a raiva e a dor. Eu estava parada à porta da cozinha, com o pano ainda nas mãos, sem saber se devia avançar ou recuar. O cheiro do arroz queimado misturava-se ao ar pesado daquela noite de verão, mas nada era mais sufocante do que aquelas palavras.

— Inês, por favor… — tentei começar, mas ela cortou-me logo.

— Não! Não venhas agora com desculpas. Tu… tu destruíste-me a infância! — A frase caiu como um trovão. Senti o chão fugir-me dos pés. O meu coração batia tão forte que temi que ela o ouvisse.

Nunca pensei ouvir isto da minha filha. Sempre me esforcei tanto… Trabalhei horas a fio no supermercado do bairro para garantir que nada lhe faltava. O pai dela, o Rui, foi-se embora quando ela tinha seis anos. Lembro-me do dia em que ele fez as malas, sem olhar para trás. Fiquei sozinha com uma criança assustada e uma renda para pagar. Não havia tempo para chorar ou lamentar. Tinha de ser forte por nós duas.

Mas será que fui forte demais? Será que, ao tentar protegê-la do mundo, acabei por afastá-la de mim?

— Inês, eu fiz tudo o que pude… — murmurei, sentindo as lágrimas a quererem saltar-me dos olhos.

Ela virou-me as costas e atirou o prato para dentro do lava-loiça com força.

— Nunca estiveste lá quando eu precisei! Sempre a trabalhar, sempre cansada… Eu só queria uma mãe! Não uma máquina! — gritou, antes de sair disparada para o quarto.

Fiquei ali, sozinha na cozinha, a ouvir o eco das suas palavras. Sentei-me à mesa e enterrei a cara nas mãos. Oiço ainda a voz da minha mãe, a Dona Amélia, a dizer-me quando era pequena: “Filha, ser mãe é carregar o mundo às costas.” Mas ninguém me avisou que o mundo podia desabar assim.

Lembrei-me das noites em que chegava a casa tarde, depois do fecho do supermercado. Inês já estava deitada, muitas vezes fingia dormir só para não me ver triste ou exausta. Aos fins de semana tentava compensar: levava-a ao Jardim da Estrela, fazíamos piqueniques no tapete da sala porque não havia dinheiro para restaurantes. Mas será que isso bastava?

O telefone tocou. Era a minha irmã, a Teresa.

— Olá, mana… — disse ela, com aquela voz suave de quem sabe que algo não está bem.

Desabei em lágrimas. Contei-lhe tudo: as palavras da Inês, a dor no peito, o medo de ter falhado como mãe.

— Não te martirizes tanto — disse ela. — A adolescência é cruel. Lembras-te de como eu era com a mãe? Só lhe dizia disparates…

Mas isto era diferente. Eu sentia-o nos ossos. Havia mágoa verdadeira na voz da Inês.

Na manhã seguinte tentei falar com ela antes de sair para o trabalho.

— Inês, podemos conversar?

Ela olhou para mim com olhos vermelhos e cansados.

— Não tenho nada para dizer — respondeu seca.

Fui trabalhar com o coração apertado. No supermercado, tudo me parecia mais pesado: as caixas de fruta, os sorrisos forçados dos clientes habituais, até as piadas do senhor António na peixaria soavam vazias.

Durante o almoço sentei-me sozinha no refeitório e escrevi uma mensagem à Inês:

“Filha, desculpa se te magoei. Amo-te mais do que tudo.”

Esperei horas por uma resposta que não veio.

Quando cheguei a casa nessa noite, encontrei-a sentada no sofá com os fones nos ouvidos. Sentei-me ao lado dela em silêncio. Ouvia-se apenas o som abafado da música e o tic-tac do relógio da sala.

— Inês…

Ela tirou um dos fones e olhou para mim.

— O que foi agora?

— Só queria saber como te sentes…

Ela suspirou fundo.

— Sinto-me sozinha. Sempre me senti sozinha nesta casa — disse baixinho.

As palavras dela atravessaram-me como facas. Tentei lembrar-me de todos os momentos em que podia ter estado mais presente: as festas da escola a que não fui porque tinha turno duplo; os aniversários em que só cheguei a tempo de lhe dar um beijo de boa noite; as vezes em que ela me pedia ajuda nos trabalhos de casa e eu dizia “agora não posso”.

— Eu sei que trabalhaste muito… Mas eu só queria ter alguém para contar os meus segredos — continuou ela, quase num sussurro.

Abracei-a com força. Senti-a rígida nos meus braços, mas não a larguei.

— Desculpa, filha… Desculpa mesmo. Fiz tudo errado?

Ela não respondeu logo. Ficámos ali abraçadas durante minutos que pareceram horas.

Nos dias seguintes tentei mudar pequenas coisas: deixei bilhetes na lancheira dela com frases tontas (“Bom dia, princesa!”), fiz panquecas ao domingo mesmo estando exausta, sentei-me ao lado dela enquanto via séries no telemóvel só para estar perto.

Mas sentia que nada era suficiente para apagar anos de distância involuntária.

Uma tarde, ao chegar a casa mais cedo do trabalho (tinha trocado um turno com a Carla), ouvi vozes vindas do quarto da Inês. Era ela e a amiga Matilde.

— A minha mãe acha que pode compensar tudo agora… — dizia Inês, num tom magoado.

— Mas tu sabes que ela gosta de ti — respondeu Matilde.

— Gosta… mas eu precisava dela antes! Agora já não sei se faz diferença…

Senti-me intrusa na conversa delas. Fugi para a cozinha e lavei loiça só para ocupar as mãos e não chorar outra vez.

Nessa noite escrevi uma carta à Inês. Não sabia se teria coragem de lha dar:

“Filha,
Sei que falhei muitas vezes contigo. Sei que estive ausente quando mais precisavas de mim. Mas acredita: cada hora extra no supermercado era para garantir que tinhas comida na mesa e roupa lavada. Nunca foi por falta de amor. Talvez tenha amado mal… mas amei-te sempre com tudo o que sou.”

Guardei a carta na gaveta da mesa-de-cabeceira. Talvez um dia lha desse.

O tempo foi passando e as coisas entre nós foram melhorando devagarinho. Começámos a conversar mais à mesa do jantar; ríamos juntas das novelas; até fomos ao cinema ver aquele filme português de que ela tanto falava.

Mas há feridas que demoram a sarar. Às vezes olho para ela e vejo ainda nos olhos um resto daquela menina triste e zangada comigo.

Pergunto-me muitas vezes: será possível reparar o passado? Ou há erros que ficam para sempre entre mãe e filha?

E vocês? Já sentiram este peso no peito? Como se recomeça depois de tanta mágoa?