A Minha Neta Perde-se na Sombra do Irmão – O Dilema de uma Avó Portuguesa

— Mãe, não te metas. Isto é entre mim e os meus filhos! — A voz da Inês ecoou pela cozinha, cortando o silêncio pesado que se instalara desde que cheguei. O cheiro do café acabado de fazer misturava-se com a tensão no ar. A Leonor, sentada à mesa com os olhos baixos, mexia distraidamente no pão com manteiga. O Tiago, como sempre, corria pela casa com o telemóvel na mão, rindo alto com um vídeo qualquer.

Senti o coração apertar. Não era a primeira vez que via a minha neta assim: encolhida, quase invisível, como se tentasse desaparecer. Desde que o Tiago nasceu, há sete anos, a Inês mudou. Antes era uma mãe dedicada à Leonor, atenta aos seus desenhos e às histórias inventadas ao deitar. Agora, tudo girava em torno do Tiago: as birras dele eram desculpadas, as notas medianas elogiadas como se fossem prémios Nobel. E a Leonor? Passava despercebida, os seus cadernos de poesia esquecidos numa gaveta.

— Inês, não vês que a Leonor precisa de ti? — arrisquei, baixando a voz para não assustar ainda mais a menina.

A minha filha virou-se para mim com olhos de aço.

— A Leonor é crescida. Não precisa que lhe peguem ao colo a toda a hora. O Tiago é diferente, é mais sensível.

Olhei para a Leonor. Tinha doze anos, mas os ombros caídos e o olhar triste faziam-na parecer mais velha. Lembrei-me de quando era pequena e corria para os meus braços sempre que caía. Agora, nem um sorriso me dava.

Naquela noite, depois do jantar, fui ao quarto da Leonor. Bati à porta devagar.

— Posso entrar, querida?

Ela assentiu sem levantar os olhos do livro.

— Estás bem?

Encolheu os ombros.

— A mãe está sempre ocupada com o Tiago… — murmurou. — Eu tento ser boa aluna, ajudar em casa… mas parece que nunca é suficiente.

Sentei-me ao lado dela e abracei-a. Senti o corpo dela rígido, como se já não soubesse receber carinho.

— Tu és suficiente, Leonor. És maravilhosa tal como és.

Ela olhou-me de relance, com lágrimas nos olhos.

— Achas mesmo?

O meu coração partiu-se em mil pedaços.

Nos dias seguintes tentei falar com a Inês várias vezes. Sempre que abordava o assunto, ela fechava-se ainda mais.

— Mãe, tu não percebes! O Tiago tem dificuldades na escola, precisa de atenção. A Leonor é independente!

— Mas ela sente-se sozinha! — insisti.

— Não te metas na minha vida! — gritou-me uma noite, batendo com a porta na minha cara.

O meu genro, o Rui, era um homem calado. Trabalhava horas intermináveis no escritório e raramente se envolvia nas questões familiares. Quando tentei falar com ele sobre a Leonor, limitou-se a encolher os ombros.

— A Inês sabe o que faz…

Senti-me impotente. Comecei a passar mais tempo com a Leonor: levava-a ao parque, ensinava-lhe receitas antigas da família, ouvíamos juntas música fado. Aos poucos vi um brilho tímido regressar aos seus olhos. Mas bastava regressar a casa para voltar à sombra do irmão.

Um dia, quando fui buscá-la à escola, encontrei-a sentada sozinha num banco do recreio. As outras raparigas riam em grupo ao longe.

— Não queres ir brincar com elas? — perguntei.

Ela abanou a cabeça.

— Dizem que sou esquisita… Que só falo de livros e poesia…

Apertei-lhe a mão.

— Não há mal nenhum em seres diferente. Mas tens de acreditar em ti.

Ela sorriu-me tristemente.

Nessa noite não consegui dormir. Oiço ainda as palavras da Inês ecoarem na minha cabeça: “Não te metas”. Mas como posso não me meter quando vejo a minha neta definhar? Quando vejo uma criança perder-se na solidão dentro da própria casa?

Na semana seguinte aconteceu algo que mudou tudo. Recebi um telefonema da escola: a Leonor tinha desmaiado durante uma aula. Corri para lá o mais depressa que pude. Quando cheguei à enfermaria, encontrei-a pálida e assustada.

— Avó… — sussurrou ela ao ver-me — Não digas nada à mãe…

O médico disse que era cansaço e stress. Fiquei em choque. Uma menina de doze anos com stress? Liguei à Inês imediatamente.

— Isto não pode continuar! — gritei-lhe ao telefone — A Leonor está doente! Precisa de ti!

Ela respondeu-me fria:

— Estás a exagerar. Ela só quer chamar a atenção.

Nesse momento percebi que tinha de agir. Falei com o Rui novamente.

— Rui, por favor… A Leonor precisa de ajuda! Se vocês não conseguem vê-lo, deixem-na vir viver comigo por uns tempos!

Ele olhou-me nos olhos pela primeira vez em anos.

— Não sei… A Inês nunca vai aceitar isso…

Mas eu já tinha decidido.

No fim-de-semana seguinte convidei a Leonor para dormir em minha casa. Fiz-lhe o seu prato preferido: arroz de pato à moda da Beira Baixa. Vimos filmes antigos e rimos até tarde. Pela primeira vez em muito tempo vi-a feliz.

No domingo à noite sentei-me com ela na varanda.

— Leonor… Gostavas de ficar aqui comigo por uns tempos? Só até te sentires melhor…

Ela olhou-me com esperança nos olhos.

— Achas que a mãe deixa?

Senti um nó na garganta.

— Vou falar com ela amanhã…

A conversa com a Inês foi um desastre anunciado.

— Queres roubar-me a filha agora? — gritou ela — Sempre foste assim! Nunca confiaste em mim!

Chorei nessa noite como há muito não chorava. Senti-me dividida entre o amor pela minha filha e o dever de proteger a minha neta.

Nos dias seguintes tentei convencer a Inês de todas as formas possíveis: sugeri terapia familiar, pedi ao Rui para interceder… Nada resultou. A Inês estava irredutível.

Foi então que recebi uma carta da Leonor. Escreveu-a à mão e deixou-a escondida no bolso do meu casaco:

“Querida avó,
Obrigada por cuidares de mim quando ninguém mais vê como me sinto. Sei que não posso pedir-te para escolheres entre mim e a mãe… Só queria sentir-me amada outra vez.”

Li aquelas palavras vezes sem conta até as lágrimas secarem no meu rosto.

Hoje estou aqui sentada na sala vazia da minha casa, com o telefone na mão e o coração dividido. Sei que se insistir posso perder a relação com a minha filha para sempre. Mas se não fizer nada… quem vai salvar a Leonor?

Às vezes pergunto-me: quantas crianças vivem assim nas sombras dos irmãos? Quantas mães fecham os olhos ao sofrimento dos filhos mais silenciosos? E nós, avós… até onde devemos ir para proteger quem amamos?