A Minha Mãe Mudou-se Cá Para Casa Aos 75: Rapidamente Percebi Que Foi Um Erro

— Não percebo porque é que tens sempre de deixar a loiça na pia, Mariana! — a voz da minha mãe ecoou pela cozinha, carregada de impaciência e aquele tom crítico que me acompanhou desde a infância.

Fechei os olhos por um segundo, tentando controlar o nó na garganta. Era o terceiro dia desde que a minha mãe, Maria do Carmo, se mudara para nossa casa. Três dias. E já parecia que o chão me fugia dos pés.

— Mãe, eu ia lavar agora — respondi, esforçando-me por soar calma, mas sentindo a irritação a ferver por dentro. — Só fui pôr o Diogo a fazer os trabalhos de casa.

Ela bufou, ajeitando o xaile nos ombros magros. — No meu tempo, a casa estava sempre impecável. Não sei como consegues viver neste caos.

Olhei para o relógio. O meu marido, António, ainda não tinha chegado do trabalho. Como sempre, era eu quem ficava com tudo em cima: os miúdos, a casa, agora também a minha mãe.

Quando sugeri que ela viesse viver connosco, achei sinceramente que era o melhor. O apartamento dela em Benfica já não tinha condições, e ela começava a esquecer-se das coisas. Uma vez quase deixou o gás ligado. Fiquei apavorada. Mas nunca imaginei que seria tão difícil.

Naquela noite, depois de deitar as crianças, sentei-me no sofá com um chá nas mãos. A minha mãe estava no quarto dela, a ver novelas na televisão baixinho. António chegou tarde, como sempre.

— Então, como correu o dia? — perguntou ele, pousando as chaves na mesa.

Suspirei. — Igual aos outros. A mãe não para de implicar comigo. Sinto-me uma criança outra vez.

Ele sentou-se ao meu lado e passou-me o braço pelos ombros. — Ela está habituada à casa dela, às rotinas dela. Vai demorar a adaptar-se.

— E se nunca se adapta? — perguntei, baixinho.

No dia seguinte, acordei com barulho na cozinha. A minha mãe já estava de pé, a preparar o pequeno-almoço para todos. O cheiro do café misturava-se com o aroma das torradas queimadas.

— Mariana! Vem cá depressa! — gritou ela.

Corri para lá e encontrei-a aflita com a torradeira a deitar fumo.

— Eu só queria ajudar… — disse ela, com os olhos marejados de lágrimas.

De repente, vi-a como realmente era: uma mulher envelhecida, assustada com as mudanças e com medo de perder o controlo sobre a própria vida. Senti uma pontada de culpa por toda a irritação que vinha acumulando.

— Não faz mal, mãe. Eu trato disso — disse, tentando sorrir.

Mas os dias seguintes foram uma sucessão de pequenos atritos: ela criticava a forma como educava os meus filhos, implicava com as minhas escolhas alimentares (“No meu tempo não se dava iogurtes às crianças ao pequeno-almoço!”), e até com a maneira como dobrava as toalhas.

Uma tarde, ouvi-a discutir com o Diogo porque ele queria jogar consola antes de fazer os trabalhos da escola.

— No meu tempo não havia dessas coisas! — ralhou ela. — Primeiro o dever, depois o lazer!

O Diogo olhou para mim em busca de apoio. Senti-me dividida entre proteger o meu filho e respeitar a autoridade da minha mãe.

À noite, António sugeriu que conversássemos todos juntos.

— Mãe — comecei eu, hesitante — precisamos de encontrar uma forma de vivermos todos em paz aqui em casa.

Ela cruzou os braços e fitou-me com aquele olhar duro que conhecia tão bem.

— Eu só quero ajudar. Não quero ser um peso para ninguém.

— Não és um peso — menti, sentindo-me horrível por dentro. — Mas precisamos de espaço uns para os outros.

Ela não respondeu. Levantou-se e foi para o quarto dela sem dizer mais nada.

Nessa noite chorei baixinho na cama. António tentou consolar-me, mas eu sentia-me sozinha como nunca antes.

Os dias passaram e as tensões aumentaram. Comecei a evitar estar em casa quando podia; inscrevi-me num curso de cerâmica só para ter uma desculpa para sair à noite uma vez por semana. Sentia-me culpada por desejar distância da minha própria mãe.

Um sábado à tarde, durante um almoço em família, tudo explodiu. A minha mãe criticou abertamente o António por não ajudar mais em casa.

— No tempo do teu pai, ele fazia questão de ajudar! — atirou ela.

António perdeu a paciência e respondeu:

— Dona Maria do Carmo, eu trabalho doze horas por dia para sustentar esta família! Não acha que já faço bastante?

O silêncio caiu sobre a mesa como uma pedra. Os miúdos olharam assustados de um para o outro. Eu senti-me envergonhada e furiosa ao mesmo tempo.

Depois desse episódio, as coisas mudaram. A minha mãe começou a isolar-se cada vez mais no quarto dela. Deixou de querer sair para passear ou ver as amigas no centro de dia. Eu tentava puxá-la para fora daquele casulo, mas ela recusava sempre:

— Não quero ser um estorvo para ninguém — dizia ela baixinho.

Um dia encontrei-a sentada na cama com uma caixa cheia de fotografias antigas. Estava a chorar em silêncio.

— Mãe… — sentei-me ao lado dela e abracei-a.

Ela olhou para mim com olhos vermelhos e cansados.

— Sinto falta da minha casa… das minhas coisas… da minha vida…

Nesse momento percebi que ambas tínhamos perdido algo: ela perdeu a independência; eu perdi a paz no meu próprio lar.

Começámos então a procurar alternativas: falámos com assistentes sociais sobre lares e residências assistidas; visitámos algumas juntas. A minha mãe chorou em cada visita. Eu sentia-me uma filha ingrata por sequer considerar essa hipótese.

Mas também sabia que não podia continuar assim: os meus filhos estavam ansiosos; o meu casamento começava a ressentir-se; eu própria andava exausta e deprimida.

No fim de contas, decidimos que ela ficaria connosco mais uns meses enquanto tentávamos adaptar-nos todos à nova realidade. Contratámos uma senhora para vir ajudar algumas horas por semana; inscrevi a minha mãe num grupo de leitura na biblioteca local; tentei envolver os miúdos nas rotinas dela para criarem laços diferentes.

As coisas melhoraram um pouco, mas nunca voltaram ao que eram antes. A relação entre mim e a minha mãe ficou marcada por esta experiência: mais realista, talvez mais madura, mas também mais distante em certos aspetos.

Hoje olho para trás e pergunto-me: será possível conciliar amor filial com respeito pelos nossos próprios limites? Ou será que estamos condenados a repetir os erros das gerações anteriores?