A Minha Filha Perdida: Confissões de Uma Mãe Sobre as Fraturas da Família
— Leonor, por favor, atende o telefone. — A minha voz ecoava no silêncio da cozinha, enquanto olhava para o visor do telemóvel pela décima vez naquela manhã. O relógio marcava 10h12, e o bolo de aniversário do António, o meu marido, já arrefecia em cima da bancada. Era o seu 60º aniversário, e tudo o que ele queria era ter a filha ao lado. Mas ela não vinha. Não vinha há meses.
Lembro-me do dia em que Leonor me disse que ia casar com o Ricardo. — Mãe, ele é diferente de todos os outros. Faz-me sentir viva. — Eu sorri, mas por dentro sentia um aperto. O Ricardo era reservado, quase frio, e nunca se esforçou para se aproximar de nós. O António tentava puxar conversa, mas ele respondia sempre com monossílabos. — É só o feitio dele — dizia Leonor, sempre a defendê-lo.
O tempo passou e a distância cresceu. No início, Leonor vinha jantar connosco aos domingos. Depois começou a faltar uma vez ou outra. — O Ricardo está cansado, mãe. — Ou então: — Temos coisas para tratar em casa. — Até que um dia deixou de vir de todo. O António fingia não se importar, mas eu via-o a olhar para a porta sempre que ouvia um carro a passar na rua.
No Natal passado, tentei juntar toda a família. Preparei o bacalhau com todos, como sempre fazia, e pus a mesa com os pratos da avó Rosa. Liguei à Leonor de manhã:
— Filha, a que horas chegam?
— Mãe… este ano vamos ficar só nós os dois. O Ricardo não gosta de confusão.
Senti um nó na garganta. — Mas é Natal, Leonor…
— Mãe, por favor, não compliques.
Desligou antes que eu pudesse responder. Fiquei ali parada, com o telefone na mão e as lágrimas a escorrerem-me pelo rosto. O António abraçou-me em silêncio.
Os meses seguintes foram um vazio. A casa parecia maior, mais fria. O António começou a sair mais cedo para o café e chegava tarde, como se quisesse evitar o silêncio de casa. Eu ocupava-me com as limpezas e as idas ao mercado, mas nada preenchia aquele buraco.
Um dia, decidi ir à casa da Leonor sem avisar. Levei um bolo de laranja ainda quente e bati à porta com esperança. Foi o Ricardo quem abriu.
— Olá, Ricardo. Está a Leonor?
Ele olhou-me como se eu fosse uma intrusa.
— Está ocupada.
— Posso esperar?
Ele hesitou antes de abrir mais um pouco a porta.
A Leonor apareceu na sala, com ar cansado.
— Mãe… podias ter avisado.
— Queria só ver como estavas.
Ela olhou para o Ricardo antes de responder:
— Não podes ficar muito tempo. Temos planos.
Senti-me tão deslocada naquela casa que mal consegui falar. Entreguei-lhe o bolo e saí apressada, sem olhar para trás.
As semanas passaram e cada vez falávamos menos. O António fazia anos em junho e eu tentei convencê-la a vir:
— Filha, é uma data especial…
— Mãe, já disse que não podemos.
— O teu pai sente tanto a tua falta…
— Mãe! Não insistas!
Desligou outra vez na minha cara. O António ouviu tudo da sala e ficou calado durante horas.
Naquele dia do aniversário, sentei-me à mesa posta para quatro pessoas — eu, o António, a Leonor e o Ricardo — mas só éramos dois. O António soprou as velas sem fazer um pedido. Depois levantou-se e foi para o quarto sem dizer palavra.
Fiquei sozinha na cozinha, a olhar para as fotografias antigas na parede: a Leonor pequena no colo do pai; nós os três na praia da Nazaré; o sorriso dela quando entrou na universidade. Onde foi parar aquela menina doce?
À noite, não consegui dormir. Fiquei a pensar em tudo o que podia ter feito diferente. Será que fui demasiado exigente? Será que devia ter aceitado melhor o Ricardo? Ou será que perdi a minha filha para sempre?
No dia seguinte, recebi uma mensagem da Leonor:
“Mãe, não me ligues mais. Preciso de espaço.”
O mundo desabou debaixo dos meus pés. Passei dias sem sair de casa, sem comer direito. O António tentava animar-me:
— Ela vai voltar… Vais ver.
Mas eu sabia que não era assim tão simples.
As vizinhas começaram a perguntar:
— Então e a Leonor? Já tem filhos?
Eu sorria e mudava de assunto.
Uma tarde chuvosa de outubro, recebi uma carta pelo correio. Era da Leonor:
“Mãe,
Sei que estás magoada comigo. Não é fácil para mim também. O Ricardo não gosta de grandes famílias nem de confusões; eu tento equilibrar tudo mas sinto-me sempre dividida. Às vezes sinto que nunca vou conseguir agradar a ninguém: nem ao Ricardo nem a vocês.
Preciso de tempo para perceber quem sou nesta nova vida. Não deixei de vos amar, mas preciso de espaço para crescer.
Leonor”
Li aquela carta dezenas de vezes. Chorei muito — de tristeza mas também de alívio por saber que ela ainda pensava em nós.
O tempo passou devagarinho. Comecei a escrever-lhe cartas também, sem esperar resposta imediata. Contava-lhe do jardim, das flores novas que plantei; falava-lhe do pai e das saudades que sentíamos; mandava-lhe receitas antigas da avó Rosa.
Um dia recebi uma mensagem curta: “Obrigada pelas cartas.”
Não sei se algum dia voltaremos a ser uma família unida como antes. Mas aprendi que às vezes temos de deixar ir para poder voltar a abraçar.
Será que alguma mãe está preparada para perder uma filha assim? E vocês — já sentiram este vazio dentro de casa? Como lidaram com ele?