A Minha Filha Já Não É a Mesma: Onde Foi Que Errámos?

— Inês, por favor, fala comigo! — implorei, segurando-lhe a mão fria sobre a mesa da cozinha. Ela desviou o olhar, fitando o chão como se ali encontrasse as respostas para todas as perguntas que eu não ousava fazer em voz alta. O silêncio entre nós era tão denso que quase conseguia ouvi-lo a ecoar pelas paredes da casa.

Nunca imaginei que chegaria a este ponto. A minha filha, outrora tão risonha, cheia de sonhos e gargalhadas fáceis, agora era uma presença ausente, um vulto que se arrastava pelos corredores. Desde que casou com o Rui, há pouco mais de um ano, Inês mudou. Não foi de um dia para o outro; foi um processo lento, quase impercetível, como a água que escorre por uma fissura até abrir um buraco no chão.

Lembro-me do dia do casamento como se fosse ontem. Ela estava linda, com o vestido branco simples e o cabelo apanhado num coque desalinhado. O Rui parecia nervoso, mas sorria muito. Na altura, pensei que era apenas ansiedade. Agora pergunto-me se não seria já o prenúncio de algo mais sombrio.

— Mãe, está tudo bem — murmurou Inês, finalmente, mas a voz dela soava distante, como se falasse de dentro de um poço.

— Não está nada bem! — insisti, sentindo as lágrimas a ameaçarem-me os olhos. — Tu já não és tu. Já não ris, já não me contas nada… O que é que se passa?

Ela encolheu os ombros e levantou-se abruptamente.

— Tenho de ir. O Rui não gosta que eu chegue tarde.

Fiquei ali sentada, sozinha, com o cheiro do café frio a entranhar-se-me na alma. O meu marido, António, entrou na cozinha nesse momento e olhou-me com aquele ar resignado de quem já desistiu de lutar.

— Deixa-a — disse ele. — Ela agora tem a vida dela.

Mas como é que uma mãe pode simplesmente deixar? Como é que se vira costas à própria filha quando ela está claramente a afundar-se?

Os meses passaram e as visitas da Inês tornaram-se cada vez mais raras. Quando vinha cá a casa, estava sempre apressada, olhava constantemente para o telemóvel e respondia às mensagens do Rui com uma ansiedade palpável. Uma vez ouvi-a ao telefone:

— Sim, já estou a sair… Não, não demoro… Sim, prometo…

Quando desligou, vi-lhe as mãos a tremer.

Tentei falar com o Rui algumas vezes. Ele era sempre educado, mas evasivo. Dizia que estava tudo bem, que a Inês andava cansada por causa do trabalho novo. Mas eu conheço a minha filha. Sei quando ela está cansada e quando está infeliz.

Uma noite, depois de mais uma discussão com o António — ele dizia que eu estava a exagerar — sentei-me no quarto da Inês. Ainda lá estavam alguns dos peluches da infância dela e uma fotografia nossa na praia da Nazaré. Olhei para aquela menina de olhos brilhantes e perguntei-me: onde é que ela ficou?

Comecei a reparar em pequenos sinais: as roupas largas para esconder o corpo magro demais; os olhos inchados como quem chora em silêncio; as respostas monossilábicas às minhas perguntas. Tentei falar com a irmã dela, a Mariana.

— Achas que a Inês está bem? — perguntei-lhe numa tarde em que estávamos as duas a arrumar a despensa.

A Mariana hesitou antes de responder:

— Acho que ela não quer preocupar ninguém… Mas também acho que o Rui é muito controlador. Ela já não sai com as amigas, nunca pode ir jantar fora sem ele…

O meu coração apertou-se ainda mais. Lembrei-me das vezes em que tentei ligar à Inês à noite e ela não atendeu. No dia seguinte dizia sempre que estava cansada ou ocupada.

A gota de água foi um domingo à tarde. Tínhamos combinado um almoço de família cá em casa. A Inês chegou atrasada e vinha sozinha. O Rui tinha ficado em casa porque «não se sentia bem». Durante o almoço mal tocou na comida e ficou calada quase todo o tempo. Quando lhe perguntei se estava tudo bem no casamento, ela levantou-se da mesa e foi fechar-se na casa de banho.

Fui atrás dela e bati à porta.

— Inês, abre por favor…

Ouvi-a soluçar baixinho do outro lado.

— Mãe… eu não sei o que fazer…

Senti-me impotente como nunca antes na vida. Quis abraçá-la, protegê-la de tudo aquilo, mas ela não abriu a porta.

Nessa noite liguei-lhe várias vezes. Só me respondeu no dia seguinte com uma mensagem curta: «Desculpa mãe. Estou bem.»

Mas eu sabia que era mentira.

Comecei a investigar discretamente. Falei com algumas amigas dela da faculdade e todas diziam o mesmo: desde que casou com o Rui, a Inês afastou-se de toda a gente. Já não ia aos jantares nem aos cafés; raramente respondia às mensagens; parecia sempre preocupada com o tempo.

Confrontei o António:

— Temos de fazer alguma coisa! Não podemos ficar de braços cruzados!

Ele suspirou:

— E o que queres tu fazer? Ir lá bater à porta deles? Meter-nos no casamento deles? Isso só vai piorar as coisas…

Mas eu não conseguia ficar parada.

Numa noite chuvosa, tomei coragem e fui até à casa deles em Benfica. Toquei à campainha e esperei. O Rui abriu a porta com um sorriso forçado.

— Olá Dona Teresa… A Inês está no banho… Quer entrar?

Sentei-me na sala e esperei. Quando a Inês apareceu, vi logo nos olhos dela o pânico.

— Mãe? O que fazes aqui?

— Precisava de te ver — respondi baixinho.

O Rui ficou ali parado, a observar-nos como quem vigia um animal selvagem prestes a fugir da jaula.

— Está tudo bem? — perguntou ele à Inês, mas havia uma ameaça velada na voz dele.

Ela assentiu rapidamente e sentou-se ao meu lado no sofá.

— Mãe… eu estou cansada…

Olhei-a nos olhos e vi ali um pedido de socorro mudo.

— Se precisares de mim… sabes onde estou — disse-lhe apenas.

Saí dali com o coração despedaçado.

Nos dias seguintes tentei manter contacto sem pressionar demasiado. Mandava-lhe mensagens curtas: «Amo-te», «Estou aqui para ti», «Não estás sozinha». Às vezes respondia com um emoji triste; outras vezes nem isso.

Até que numa madrugada recebi uma chamada dela. A voz tremia:

— Mãe… podes vir buscar-me?

Saltei da cama e fui buscá-la ao portão do prédio deles. Ela entrou no carro com uma mala pequena e os olhos vermelhos de tanto chorar.

Em casa, abraçou-se a mim como quando era criança e desabou:

— Ele controla tudo… até o dinheiro… diz-me como me devo vestir… grita comigo quando chego tarde… Eu tenho medo dele, mãe…

Chorei com ela até amanhecer.

Nos dias seguintes ajudámo-la a procurar apoio psicológico e um advogado para tratar da separação. O Rui tentou contactá-la várias vezes mas ela recusou sempre falar com ele.

Aos poucos fui vendo a minha filha regressar: primeiro um sorriso tímido; depois uma gargalhada inesperada ao ver um vídeo parvo; finalmente aquele brilho nos olhos quando falou em voltar à universidade para acabar o mestrado.

Hoje olho para trás e pergunto-me: onde foi que errámos? Devíamos ter visto os sinais mais cedo? Devíamos ter sido mais firmes? Ou será que cada um tem mesmo de fazer o seu próprio caminho — mesmo quando esse caminho é feito de dor?

Será possível proteger quem amamos sem os sufocar? E vocês — já passaram por algo assim? O que fariam no meu lugar?