“A minha filha diz que sou tóxica. Mas eu só sei amar demais”: A história de uma mãe portuguesa entre amor e incompreensão

— Mãe, por favor, pára! Não aguento mais as tuas perguntas, os teus telefonemas, as tuas mensagens a toda a hora! — gritou Inês, com os olhos marejados de lágrimas, a voz a tremer entre o cansaço e a raiva.

Fiquei ali, parada, com o telemóvel na mão, a ouvir o silêncio pesado que ficou depois do estalo da chamada desligada. O meu coração batia descompassado, como se tivesse levado um murro no peito. Senti-me pequena, inútil, como se todo o amor que dei à minha filha fosse agora uma espécie de veneno. Tóxica. Ela disse mesmo essa palavra. Tóxica. Como se eu fosse um fumo negro a sufocá-la.

Chamo-me Maria do Carmo, tenho 68 anos e uma filha só, a Inês. O pai dela foi-se embora quando ela tinha três anos. Lembro-me do dia em que ele saiu de casa, com uma mala pequena e um olhar vazio. Disse-me que não sabia amar, que precisava de espaço. Nunca mais voltou. Fiquei eu e a Inês, sozinhas num T2 em Almada, com as contas por pagar e o frigorífico quase sempre vazio. Mas nunca lhe faltou nada — pelo menos era o que eu pensava.

Trabalhei anos a fio como empregada de balcão numa pastelaria. Saía de casa às seis da manhã, voltava às oito da noite. A Inês ficava com a vizinha, a dona Lurdes, que lhe dava o jantar e a punha a dormir. Eu chegava tarde, mas sempre lhe dava um beijo na testa, mesmo que ela já estivesse a dormir. Aos fins de semana, fazíamos panquecas e íamos ao parque. Eu tentava compensar o tempo perdido, mas sentia sempre que era pouco.

Quando a Inês entrou na adolescência, começaram as discussões. Ela queria sair à noite, eu dizia que não. Ela queria ir de férias com amigas, eu não deixava. Tinha medo de tudo: dos rapazes, das drogas, dos acidentes. O mundo parecia-me um lugar perigoso demais para a minha menina. Ela dizia que eu era sufocante. Eu dizia que era amor. Mas será que era mesmo?

Lembro-me de uma noite em particular. Inês chegou tarde, eram quase três da manhã. Eu estava sentada no sofá, de robe, com o coração aos pulos. Quando ela entrou, atirei-lhe:

— Achas normal estares a chegar a estas horas? Sabes o susto que me pregaste?

Ela olhou para mim com um misto de pena e irritação:

— Mãe, tenho 18 anos! Não podes controlar tudo na minha vida!

— Eu só quero proteger-te!

— Proteger ou prender? — respondeu ela, antes de se fechar no quarto.

Os anos passaram, mas o padrão manteve-se. Quando foi para a faculdade no Porto, ligava-lhe todos os dias. Se não atendia, mandava mensagem atrás de mensagem. Se não respondia, ligava às amigas dela. Uma vez até liguei para a residência universitária. Ela ficou furiosa:

— Mãe, isto é demais! Não podes invadir assim a minha vida!

— Eu só quero saber se estás bem! — tentei justificar-me, mas ela já não me ouvia.

Agora, Inês tem 32 anos, vive em Lisboa com o namorado, o Tiago. Vemo-nos pouco. Ela diz que está ocupada, que tem muito trabalho. Eu tento não ligar tanto, mas não consigo. Sinto um vazio dentro de mim, uma solidão que me consome. O telefone é o meu único elo com ela. Quando não responde, fico ansiosa. Imagino mil cenários: um acidente, uma doença, um desgosto. O medo nunca me largou.

No Natal passado, tentei fazer as pazes. Convidei-a para jantar cá em casa. Fiz o bacalhau à Brás de que ela gostava em pequena. Quando chegou, vinha apressada, com o Tiago atrás.

— Mãe, só podemos ficar uma hora. Temos outro jantar depois — disse ela, sem me olhar nos olhos.

A mesa estava posta com a toalha de linho da minha mãe. Sentei-me à cabeceira, olhei para ela e tentei sorrir.

— Inês, estás tão magra… Tens comido bem? — perguntei, sem pensar.

Ela suspirou:

— Lá estás tu outra vez…

O Tiago tentou aliviar:

— Dona Maria do Carmo, a Inês está ótima. Trabalha muito, mas está feliz.

— Felicidade não enche barriga — respondi, sem conseguir evitar.

O jantar foi um silêncio desconfortável. Quando se foram embora, fiquei sozinha na cozinha, a arrumar os pratos quase intactos. Senti-me inútil. Senti-me velha.

No dia seguinte, tentei ligar-lhe. Não atendeu. Mandei mensagem: “Desculpa se disse alguma coisa errada. Amo-te muito.” Não respondeu.

Fui ao centro de saúde porque andava com dores no peito. A médica perguntou-me se estava ansiosa. Chorei à frente dela. Disse-lhe que sentia falta da minha filha, que tinha medo de ficar sozinha para sempre. Ela disse-me que devia procurar ajuda, talvez um psicólogo. Mas como é que um estranho me vai ajudar a preencher este vazio?

Os dias passaram lentos. Comecei a ir à missa todos os domingos, só para ver gente. A dona Lurdes morreu há dois anos e as vizinhas novas mal falam comigo. Oiço as vozes das crianças no pátio e lembro-me da Inês em pequena, a correr de braços abertos para mim.

No mês passado, fiz anos. Esperei o dia todo por uma chamada da Inês. Só ao fim da tarde recebi uma mensagem: “Parabéns mãe. Beijinhos.” Chorei tanto que fiquei sem forças para jantar.

Esta semana, tentei outra vez ligar-lhe. Atendeu finalmente, mas a conversa foi curta e fria.

— Mãe, estou no trabalho. Não posso falar agora.

— Inês, só queria ouvir a tua voz…

— Mãe, já falámos disto. Preciso de espaço. Não podes viver só para mim.

— Mas eu só tenho a ti…

— Isso não é justo para mim! — disse ela, antes de desligar.

Fiquei ali sentada, com o telefone na mão, a olhar para as paredes brancas da sala. Senti-me como uma sombra da mulher que fui. Será que errei tanto assim? Será que amar demais pode ser tão mau como amar de menos?

Às vezes dou por mim a falar sozinha:

— Inês, minha filha… Se soubesses o quanto te amo…

Mas ela não ouve. Ou talvez não queira ouvir.

Agora passo os dias entre a televisão e as memórias. Guardo as fotografias dela em pequena numa caixa de sapatos. Às vezes abro-a e fico horas a olhar para aqueles olhos grandes e curiosos. Pergunto-me onde foi que perdi a minha filha. Ou será que nunca a tive verdadeiramente?

Se pudesse voltar atrás, faria tudo diferente? Não sei. Só sei que o amor de mãe é uma coisa estranha: pode salvar ou pode sufocar. E eu só queria ter sabido a diferença a tempo.

Dizem que o tempo cura tudo. Mas será que cura mesmo? Ou só nos ensina a viver com a dor?

E vocês? Acham que é possível amar demais? Ou será que o amor de mãe nunca é demais?